Zia Haider Rahman, escritor sem casa

Natural do Bangladesh, criado em Inglaterra, é um escritor à procura do seu lugar. O desenraizamento e o modo como cruza autobiografia com uma vasta associação de saberes têm-lhe valido comparações com os autores do exílio, entre os quais Sebald. À Luz do Que Sabemos foi editado em Portugal.

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FOTO: Katherine Rose

"Porque é que alguém como eu se sente socialmente alienado?" Esta é a pergunta que tem ocupado tempos a mente de Zia Haider Rahmen, natural do Bangladesh rural e criado no Reino Unido para onde a família emigrou era ele pequeno, em 1971, durante a guerra da Independência. Diz isso com forte sotaque britânico que conseguiu ao imitar a voz dos anunciantes da BBC. O pai foi motorista de autocarro em Londres e a mãe costureira. Ele estudou em Oxford, trabalhou no mercado de investimento em Wall Street, e mais tarde foi advogado de causas relacionadas coma defesa dos direitos humanos. Agora escreve. Em 2014 publicou À Luz do Que Sabemos, romance-ensaio, mais de 700 páginas, onde discorre sobre quase tudo o que lhe interessa, "o mundo da imaginação, dos livros e das ideias". A frase é de Zafar, protagonista deste livro que agora tem edição em Portugal, personagem autobiográfica, homem que já foi muita coisa e se encontra meio perdido na manhã de Setembro de 2008, o momento do crash-financeiro mundial, quando bate à porta do amigo, anos depois do último encontro entre os dois. No seu mundo privilegiado de South Kensington, o narrador abriu a porta e viu “um homem de pele acastanhada e aspecto magro e macilento, com as mação do rosto salientes sobressaindo de uma barba descuidada”. 

O que se segue é um percurso de reconstituição de vida nada isento de culpa por parte do amigo, com recuo até à adolescência, quando os dois se conheceram em Oxford e iniciaram uma amizade onde os separava “a proveniência de classe”. É esse o momento em que arranca a escrita deste romance, no início da escrita da história de Zafar por parte do amigo “… não é apenas a culpa que me faz sentar à secretária armado de caneta e papel para dar conta da história do Zafar, da minha intervenção nela e da nossa amizade. Será sobretudo algo que não se pode resumir a uma única palavra, mas que, segundo espero, tomará forma à medida que for avançando.”

Uma história do desentendimento

A história da crise pessoal de Zafar é o reflexo da história do mundo no momento em que se encontra, uma “história do desentendimento entre nações, a guerra do século XXI, o casamento na aristocracia inglesa e o amor à matemática”. E aí cabe tudo. Política, geo-estratégia, depressão, amor, amizade, jogos de poder, religião, identidade, cartografia de território e de emoções, interclassismo, exílio, solidão. “O meu cérebro não conhece fronteiras entre assuntos”, diz Zia numa conversa a partir de Londres, onde vive a maior parte do tempo, afirmando que a sua mente funciona por associações que no limite podem ir até ao infinito. “Não penso na História ou na carpintaria como coisas separadas, e esse não reconhecimento de fronteiras pode trazer problemas, estou sempre a derivar; em conversas isso pode levar as pessoas ao desespero, ‘porque é que estás a falar disso se a conversa é sobre isto?’

O desenraizamento e o modo como cruza autobiografia com essa vasta associação de saberes e múltiplos interesses têm-lhe valido comparações com os chamados autores do exílio, entre os quais W. G. Sebald ou, sobretudo, V. S. Naipaul. “O exílio hoje é diferente”, começa por dizer Zia Haider Rahman, referindo-se à globalização actual, por um lado, e a um passado que não lhe deixou marcas culturais tão fortes como aos dois autores referidos, sobretudo a Naipaul. “A minha ficção literária de base não é da Ásia. Naipaul, por exemplo, veio para Inglaterra tinha 17 ou 18 anos. Cresceu nas Caraíbas. Eu cresci em Inglaterra e li os livros que foram mais relevantes para mim em bibliotecas. Não tinha pais que pudessem guiar as minhas leituras. Eles quase nem falavam inglês. A minha formação literária foi guiada pela escola e depois confiava em alguns romances. Eu era muito ingénuo nesse aspecto; os livros para mim tinham uma espécie de autoridade impressa e eu ia confiando no que lia”, experiência que, como o seu protagonista, o faz pensar no conhecimento como “um acto social”. “Ultimamente tenho pensado muito nessa questão, em como me vejo enquanto escritor. Há muitas pessoas da minha geração que nasceram no Oriente e cresceram no Ocidente e se sentem estrangeiros ou estranhos quando voltam à terra de origem dos pais. Eu sinto muito isso. Quando vou ao Bangladesh, as pessoas não sabem como se dirigir a mim, e eu não sei como me dirigir a elas. Acho que ainda sinto isso mais porque não venho de uma classe que esteja preparada para me receber. Há pessoas que se sentem desconfortáveis. Estamos sempre a falar em migração do tipo racial, mas há outro aspecto a referir quando se fala de migração: que é a migração de classe. As pessoas olham para mim de modo diferente porque  migrei por causa da classe. Eles estão muito cientes de que a única razão pela qual estou agora a falar com eles e sou vagamente famoso é porque tive uma oportunidade que me foi dada pelo sistema educativo britânico. De outro modo não teria chegado à universidade.”

Do pessoal, Zia passa para o político. É assim no livro, não é diferente na conversa. “Se olhássemos para a migração dessa maneira talvez entendêssemos melhor o que se passa na política global neste momento. Aquilo a que chamamos movimento das populações é feito sobretudo por pessoas a quem foi negado o acesso ao poder ou a um papel nas decisões de quem detém o poder sobre uma sociedade”. É por isso que mais do que um romance sobre as divisões entre Oriente e Ocidente, À Luz do Que Sabemos é, sim, sobre o poder. “Estou muito mais interessado em falar de poder. Ter mais e menos poder. Acho que não se fala suficientemente de poder, e isso explica o aparecimento de muitos movimentos populistas. Estes movimentos falam de poder mas estão a fazê-lo mas de um modo muito pouco articulado.”

Teorema para um mundo instável 

Zia Haider Rahman não tem respostas, nem o livro simplifica. Na tal rede complexa de associações que se estabelece no seu cérebro, onde um assunto não faz fronteira com outro assunto, traz a sua formação em Matemática, feita em Oxford, para a literatura e elege o Teorema da Incompletude atribuído ao austro-americano Kurt Gödel (1906-1978) como guia para este livro. O narrador, de quem nunca saberemos o nome, o amigo aristocrata de Zafar, descreve-o “como a maior descoberta da matemática do século passado”, “um teorema que contém a mensagem simples de que os conseguimentos que eventualmente atingirmos ficam sempre aquém do que é verdadeiro, mesmo na matemática.” Zia situa-se, a si e ao livro, nesta concepção: “Não vejo o Teorema de Gödel como apenas aplicável à matemática. Aplica-se à minha visão do mundo enquanto lugar instável, incerto. Nenhuma das pessoas que formaram essa minha mundivisão tinha muitas certezas do que seria o mundo”. 

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O pai foi motorista de autocarro em Londres e a mãe costureira. Ele estudou em Oxford, trabalhou no mercado de investimento em Wall Street, e mais tarde foi advogado de causas relacionadas coma defesa dos direitos humanos

Entre essas pessoas estão nomes como W. G. Sebald, Edward Said, Joseph Conrad, Herman Melville, T. S. Elliot, John Le Carré, Einstein, Churchill, Pavese, Feynman, Freud. Maugham, James Baldwin, Graham Greene, Tolstói, Calvino, Naipaul, Philip Roth, Eco, Santo Agostinho, Dante… A lista completa das suas influências seria mais exaustiva, noutra cadeia de permanentes remissões a que o romance alude e de que se alimenta. Parte dos nomes que compõem essa rede imensa surgem, aliás, em epígrafe nos capítulos de um livro que põe ainda a nu o processo da sua construção. Há um homem — o narrador — que escreve sobre o seu amigo, cruzando tanto conversas pessoais quanto a própria escrita que ele foi deixando em muitas anotações, onde descobre, por exemplo os seus dias de trabalho humanitário no Afeganistão ou o internamento num hospital psiquiátrico. O livro há-de construir-se no imenso espaço entre essas duas personagens. Uma das epígrafes escolhidas por Zia Rahman é retirada de Midlemarch, o romance de 1870 de George Eliot, e quer ilustrar isso mesmo: “Todos nós, dos mais aos menos profundos, temos os nossos pensamentos enredados em metáforas e é uma fatalidade termos de agir de acordo com a sua força.”

O teorema da incompletude aplica-se aqui. Se em Matemática um e um são dois, na ficção um e um é sempre mais. É cada um mais as muitas variáveis particulares a trazer um enorme grau de incerteza ao resultado. Simplificando: “Se há duas personagens, a ficção é o que acontece entre elas e isso pressupõe o efeito surpresa". A conversa com Zia confirma assim outro pressuposto deste seu romance de estreia: não há conhecimento sem uma enorme dose de humildade. Quando escolheu para título a frase "à luz do que sabemos" queria sublinhar isso. "Tudo o que podemos dizer sob qualquer assunto parte de uma perspectiva, aponta limitações, e é sempre à luz do que sabemos.”

Zia Haider Rahman sabe que é inglês e do Bangladesh e sabe também que não se sente em casa em nenhum desses lugares. Essa ideia de desenraizamento está presente em Zafar que partilha com ele um passado em muito idêntico em relação ao qual o amigo surge como contraponto ou paradoxo. Estamos sempre perante uma personagem, situação, ideia e o seu contrário, ou se não o contrário olhada de outro ângulo. Daí a palavra “ensaio” para designar o que aqui se faz, a “tentativa”, o “esforço” de um escritor para interpretar e fazer a sua síntese pessoal sobre a influência dos outros no modo como ele é. Também o narrador ao pegar nos cadernos que o amigo escreveu no Afeganistão para reconstituir a sua biografia está a fazê-lo à luz dessas influências e sabe sempre que o resultado não independe da sua intervenção. A história de Zafar terá sempre a sua. Foi aliás Zafar quem escreveu: “Ler Philip Roth pode libertar alguém de inibições que o impediam de escrever sobre os desejos irresponsáveis, as tentações do poder e a imanência da ira, do mesmo modo que ler Naipaul pode convencer alguém a pegar no eu que quer ser tão amado, arrastá-lo cá para fora, encostá-lo a uma parede e alvejá-lo. Um escritor pode mudar o eu da escrita de outro escritor.” Somos o que vivemos, o que lemos, somos o que sabemos, dirá Zafar, e diz também Zia, com a certeza de que nunca saberemos o suficiente para evitar a surpresa. 

E é novamente a política. Ou o poder. Novamente os movimentos populistas no Ocidente. A conversa aconteceu duas semanas antes das eleições nos Estados Unidos. Zia Haider Rahman acabara de chegar a Londres vindo de Washington DC. “Sabe, eu penso sempre em mim mais em termos de classe do que de raça e talvez por isso me sinta muito mais em casa quando vou aos EUA, à costa Nordeste. Os Estados Unidos são um conjunto de países muito diferentes. É desse modo que entendo a América.” Zafar também aqui foi feito à sua imagem, mas mais do que ele Zia Rahman afirma: “Na costa nordeste, entre DC e Boston, sinto a ausência de alienação”. E volta ao princípio de tudo nesta conversa, tecendo críticas “à forte divisão de classes” em que diz basear-se a sociedade britânica, e temendo o efeito Donald Trump numa campanha que trouxe “o pior” dos tais movimentos populistas. Reconhece-lhes, no entanto — como noutros no Ocidente — uma energia vital. “Eu sou um liberal, não sou racista e que alguns deles são racistas, mas muitos destes movimentos têm uma energia que vem de muitas pessoas que querem encontrar um caminho, que não gostam do sistema que originou o crash económico de 2008 e não se contentam com as soluções pós-crash. Mas tudo isto é muito complexo. Quando alguém pergunta o que provoca determinado fenómeno espera-se que surja uma causa que explique tudo. Não é assim que o mundo funciona. O mundo físico e social funciona na junção de muitas causas. É interessante que cerca de 5 por cento dos apoiantes de Bernie Sanders digam que vão votar Trump. Os liberais num sentido lato, e onde me incluo, temos de ser capazes de encontrar um maneira de ver o mundo em que entre o modo como os outros vêem o mundo.” E faz uma pausa antes de afirmar: "É preciso que os liberais não continuem simplesmente a ficar surpreendidos". 

A conversa termina pouco depois, com Zia a referir planos para outros livros, a condenar o estatuto social que a literatura dá em vez do sustento que devia fornecer a quem escreve e confessando que a ele lhe traz uma remuneração especial: “Eu caio episodicamente em depressão e socorro-me de uma série de ferramentas para lidar com isso e manter alguma saúde mental. Faço móveis, renovo casas, preciso de fazer coisas diferentes para manter a minha cabeça fora de alguns sítios negros. A escrita também me dá isso.” E desligou, longe de saber, claro, que a grande surpresa para os liberais, como ele, estava tão próxima. Pode o teorema da incompletude ajudar a explicar? 

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