Offshores, gravidez e morte — perguntas sem resposta
As crianças fazem perguntas difíceis aos pais e encostam-nos à parede. Mas tudo está bem quando acaba numa gargalhada
A paternidade tem mil encantos e um dos meus preferidos é vermos como um bebé indefeso se vai transformando numa criança com personalidade e raciocínio. Primeiro, estão por ali, enrolados numa manta ou aconchegados no nosso colo, a dormir ou a chorar, sem sabermos o que pensam ou porque gritam. “Diz-me, bebé, porque choras? Já comeste, já te mudei a fralda. É frio? São cólicas? O que te dói?”. As perguntas saem-nos em catadupa mas eles não respondem. Só choram. Ou por fim acalmam-se, que na verdade é a resposta que mais desejamos.
Depois, vem o primeiro sorriso e percebemos a maravilha da comunicação bebé-pais. É só o começo. Hão-de responder pelo nome, rir à gargalhada com as palhaçadas que fazemos e aprender a bater palmas. Hão-de chamar papá e mamã (ou será papa e mama?), bater o pé porque os estamos a contrariar e espantar-nos porque, assim do nada, já sabem trautear uma canção. Hão-de fazer as delícias da família ao dizerem o nome dos avós e dos tios, deixar-nos boquiabertos porque aprenderam os números em inglês no YouTube e fazer-nos corar de orgulho porque repetem todas as palavras que dizemos ou apontam para a menina do outro lado do passeio que tem um casaco igual ao da irmã.
Até que um dia eles deixam de ser apenas "macaquinhos de imitação" e pensam pela própria cabeça. É a famosa fase dos porquês. Tudo começou num Verão — é quando temos mais tempo para eles. Estávamos quase prontos para ir jantar, depois de um dia de praia. Na TV, como barulho de fundo, baixinho, passava o Telejornal. E na verdade nem queríamos muito saber de notícias, mas ele tinha o radar ligado.
— Pai, o que é um offshore? — perguntou ele.
— O quê? Onde é que ouviste isso?
— Na televisão.
Ainda esbocei uma resposta do género. “É um sítio esquisito para onde as pessoas mandam dinheiro não se sabe bem porquê”. Mas na verdade já é difícil (ou impossível) explicar o que é um offshore a um adulto, quanto mais a uma criança de dois ou três anos.
Seguiu-se outro Verão e outra conversa profunda.
— Pai, não quero casar, quero viver sempre contigo e com a mamã, mas quero ter filhos.
— Está bem, filho.
— Mas tenho de encontrar uma menina, não é?
— Filho, já sabes que só as mulheres podem ter bebés, os homens não.
— Oh. Mas porquê, pai? Os homens são tão fixes!
Este é outro daqueles momentos em que, por muito que me transforme em biólogo, a explicação é insatisfatória para eles. Falo-lhe do útero, de ovários, mas sinto que não lhe sai da cabeça porque não podem os homens ficar grávidos.
Ainda assim, offshores e gravidez são assuntos fáceis. O tema mais assustador é mesmo a morte. Durante muito tempo eles nem percebem o que isso é. E nós vivemos descansados sem esse assunto ser chamado à conversa. Mas um dia ele vê a Heidi e pergunta onde estão os pais dela. Explicamos que o pai teve um acidente e que a mãe ficou doente.
— Foram para o céu — suavizamos.
— O que é isso?
E lá temos de explicar que não somos imortais, que um dia todos morremos e vamos não sabemos muito bem para onde.
Mas aquele conceito fica-lhe na cabeça. De vez em quando, sai-lhe um “pai, não quero que morras”. “Está bem, filho. Deixa lá isso”, respondo, e mudo de assunto porque (digo eu) ainda é cedo para discutirmos essas coisas — ele só tem quatro anos e meio.
E já estava eu habituado a estas perguntas, e a mudar de assunto, quando ele voltou à carga, agora com uma formulação mais engenhosa.
— Pai, vais morrer primeiro do que a mãe?
Respirei fundo, não encontrei escapatória e recorri à verdade.
— Não sei, filho. Nunca sabemos essas coisas. Mas, olha, vamos é brincar e viver. Isso é que interessa.
Ele riu-se e seguimos em frente, à espera da próxima pergunta que vai deixar o pai sem resposta. Agora, está a chegar o Natal e vou pedir que me ofereçam o livro das respostas. A Maria João Lopes, escritora e jornalista aqui no PÚBLICO, acabou de lançar mais um livro para crianças. Chama-se Os Pais Não Sabem, Mas Eu Explico. Estou ansioso por ler e ficar com mais argumentos para estes diálogos desafiadores que muitas vezes terminam com uma gargalhada. Ainda hoje me rio com aquele dia em que fomos a um restaurante, meses depois de termos combinado que os “meninos crescidos” não dizem “dói-dói” nem “chicha”, mas sim ferida e carne.
— Filho, queres salsicha?
— Pai, os meninos crescidos não dizem salsicha. Dizem salcarne!