Não há críticas? “Nós gostamos de privacidade; não damos espectáculo como os outros partidos”

Jerónimo disse que "não seria bom que não surgissem críticas" à ligação do PCP ao PS. Em dois dias não surgiram. Os militantes olham para o assunto como sendo a única solução mas admitem que as críticas se fazem longe de ouvidos alheios.

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Ao contrário de muitos militantes comunistas da Festa do Avante! que diziam apoiar o compromisso do PCP com o PS, os delegados comunistas ao congresso têm uma posição mais reservada e preferem discutir as críticas de forma recatada. Enric Vives-Rubio

“Dá-me uma pinguinha d’água/ dessa q’eu oiço correr/ entre pedras e pedrinhas / alguma gota há-de haver.” Cantando de voz afinada junto ao balcão do bar onde tinham almoçado, abrigados da chuva teimosa pelo toldo, comunistas oriundos de vários pontos do país homenageiam o grupo de cozinheiros que não podia sair da cozinha improvisada, para se juntarem aos comensais que durante duas horas acompanharam a refeição com cantorias alentejanas. 

É hora de arranque dos trabalhos depois do almoço e os mais velhos, numa estreita obediência às regras de pontualidade do congresso, dirigem-se para o pavilhão. Os que ficam a tomar café estarão todos na faixa etária dos militantes mais novos - 15% têm menos de 41 anos – e são o espelho da população mais jovem do país: em cinco, duas estão desempregadas (Sofia Costa era balconista, Paula Costa era animadora social), uma gestora dos CTT (Sofia Menezes), uma doceira (Nair Bebiano) e um administrativo clínico (Nuno Rodrigues).

“Alguma gota há-de haver/ quero molhar a garganta/ quero cantar com’á rola/ como a rola ninguém canta.”

Sendo todos delegados ao congresso, como é que os militantes com que lidam nas respectivas regiões têm visto e percebido o apoio do PCP ao Governo PS? Se até Jerónimo admite que há críticas, por que não se ouviram em dois dias de congresso? Perguntas feitas e há sorrisos cúmplices entre eles, viram-se sorrateiramente para a pessoa do lado, como que tentando escapar ao incómodo.

Sofia Costa, que anda nisto há mais anos que os outros, avança. “As questões são discutidas amplamente dentro do partido nos organismos internos, desde as comissões de freguesia, de concelho, nos organismos regionais”, vai enumerando, como se as dúvidas se fossem obrigatoriamente dissipando à medida que se vai subindo na escala. Sim, mas e os militantes? “Esclarecemos quais eram as hipóteses: ou continuar com PSD e CDS – e no meu caso deixaram o Algarve numa situação arrasadora –, ou este caminho [de apoio ao PS]. Era a única solução possível.”

“Somos um colectivo, mas há várias opiniões”, contrapõe Sofia Menezes, da Amadora. “Sim, toda a gente tem consciência das limitações. Lemos muito, discutimos, esclarecemos. Está muita coisa clarificada” na cabeça dos militantes, insiste, por cima, Sofia Costa.

“Ó patrão dá-me um cigarro/acabou-se-me o tabaco/ e o trigo que lanço à terra/ fumado dá mais um saco.”

Nuno e Nair, a doceira – e não apenas ‘boleira’, vinca - representam a estrutura de Bragança. Um terreno da direita conservadora, árduo para os comunistas, onde há alguns anos eram apontados a dedo e discriminados pela vizinhança. Até por socialistas. Hoje nota-se uma “maior consciência e abertura”, reconhece Nuno, talvez fruto do estado a que chegou a região – despovoada, sem indústria, com agricultura debilitada, e vias de comunicação caras ou existentes -, incluindo de socialistas. Já conseguem vender o Avante! à porta de uma fábrica sem serem corridos. Mas a desconfiança e o conservadorismo da região não está só na direita e Nair admite que “um ou outro” militante comunista “possa não aceitar” esta espécie de aliança.

Nuno assume como sua a solução política que aproximou PCP e PS, e veste o fato do comunista exigente, que deu com uma mão mas exige receber com a outra: “O PS lançou um programa para valorizar o interior [Programa Nacional para a Coesão Territorial]. Mas só isso não chega! É preciso muito mais para contornar décadas de desinvestimento na região!”

“É tão lindo o meu partido/ Com a foice e o martelo/ A sua bandeira rubra/ Com a estrela em amarelo.”

Entre a dentada na bifana e um gole na cerveja, António Gonçalves desconfia da abordagem. “Dentro das organizações aparecem sempre vozes dissonantes, mas toda a gente se obriga a cumprir as decisões da maioria – e isso é democracia.” É a explicação deste militante da Amora (Seixal) para a ausência de críticas no congresso e que também não abre o jogo sobre a sua visão acerca do apoio do PCP ao PS. “Podemos falar abertamente nas organizações, no entanto um delegado ao congresso não representa a sua opinião pessoal, mas sim a da sua organização. E esta deu-lhe um mandato.” E se ele for diferente do que diz a cúpula do partido? “Nós gostamos de privacidade, não damos espectáculo como os outros partidos. Temos outra matriz.” E para discutir com privacidade, o PCP fechou ontem à noite uma sessão do congresso a jornalistas e convidados, inspeccionou a sala para ver se alguém deixou gravadores ou câmaras ligadas e exigiu segredo aos militantes. Como habitualmente.

“És o símbolo do povo/ Do operário ao camponês/ É tão lindo o meu Partido/ Comunista Português.” Assim remataram os cantadores que depois haveriam de rumar à sala, para falarem, em privado, sobre o que não querem comentar em público.

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