O que é e por que importa o referendo italiano?

Os italianos são chamados a votar reformas que mudariam um terço da sua Constituição. As urnas estão abertas das 7h às 23h (menos uma hora em Lisboa) e as consequências políticas dos resultados poderão saber-se logo de seguida.

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Apoiante do "não" num comício do Movimento 5 Estrelas Marco Bertorello/AFP

O que vai a votos?
Uma reforma da Constituição que pretende diminuir a importância do Senado (a câmara alta do Parlamento), pondo fim ao actual “bicameralismo perfeito”, em que Câmara dos Deputados e o Senado têm mais ou menos os mesmos poderes legislativos. A Câmara Alta passaria a ser nomeada e constituída por representantes regionais, e de 315 membros passaria a 100. As mudanças reflectem-se também nas responsabilidades dos governos regionais, que diminuem, com um fortalecimento do Estado central, e no fim das províncias, entidades territoriais a meio caminho entre as 20 regiões e os 8000 municípios.

Porquê?
A ideia, defendida e promovida pelo primeiro-ministro, Matteo Renzi, passa por facilitar a aprovação de leis. “Se o referendo não passar, nos próximos 30 anos, quem quer que seja o primeiro-ministro, será escravo dos vetos, da chantagem e da burocracia”, avisa. Daí ter anunciado que se demitirá se o “não” vencer. Os críticos sustentam que os maiores problemas em Itália não passam pela dificuldade em fazer passar leis – às vezes, porém, isso acontece, como no caso da lei para dar os mesmos direitos dos filhos de casais às crianças que nascem fora de um casamento, uma medida que levou 1300 dias a ser aprovada.

O que é que o referendo tem a ver com a lei eleitoral?
Muito e é aqui que o assunto começa a complicar-se. O referendo não tem ligação directa à Italicum, a lei em vigor desde 1 de Julho, mas esta foi pensada tendo em conta que a reforma constitucional estaria em vigor e é por isso que apenas regula a eleição para a Câmara dos Deputados. Reforça a maioria desta câmara e dá ao partido que obtiver 40% dos votos um prémio que corresponde a 54% dos lugares (340 em 630) – se nenhum partido chegar aos 40%, está prevista uma segunda volta entre os dois mais votados. Os defensores do “não” no referendo defendem que, combinadas, estas duas mudanças, reforçam em excesso o executivo e enfraquecem o Parlamento; para o “sim”, garantem a governabilidade, num país que conheceu 65 governos desde 1945 e onde, nos últimos 20 anos, só um cumpriu uma legislatura completa.

Vai ganhar o “sim” ou o “não”?
Claro que os referendos são uma lotaria e em todos os inquéritos havia uma média de 25% de indecisos, mas segundo todas as sondagens, disponíveis até duas semanas antes do voto, o “não” vence com alguma margem – o tom do discurso político recente, com uma desdramatização deste cenário e o encontrar de soluções para o gerir, sugere que os partidos estão convencidos que das urnas sairá um chumbo. 

Porquê?
Numa votação destas, em que muitos têm dificuldades em perceber o que está realmente em jogo (há vídeos e cartoons, para além de todos os jornais terem respondido a perguntas dos eleitores), principalmente por causa da linguagem da pergunta, o mais certo é que muitos votos “não” sejam votos para punir o Governo e os erros de Renzi. O jornal La Stampa descreve “os zangados e desiludidos com Renzi”, “o povo do ‘não’”, as pessoas que esperavam por maiores mudanças e maior segurança e continuam assustadas com a economia e a incerteza laboral.

“Aprova o texto da lei constitucional no que respeita às provisões para deixar para trás o bicameralismo paritário, a contenção dos custos de funcionamento das instituições, a supressão do Cnel e a revisão do Título V da II parte da Constituição?”. Confuso? O Cnel é o Conselho Nacional da Economia e do Trabalho, que se ocupa da legislação económica e laboral, um órgão previsto na Constituição mas não essencial para o funcionamento do Estado; o “Título V da II parte da Constituição” é aquele em que se especifica a divisão territorial, com municípios, províncias, cidades metropolitanas e regiões.

Renzi continua ou não?
Não, mas talvez sim. Seria complicado não se demitir, depois de ter repetido tantas vezes que o faria. “Este Governo nasceu para aprovar reformas”, recorda o vice do Partido Democrático, centro-esquerda, no poder. “Se os italianos rejeitam a mais importante das mudanças, teremos de lidar com as consequências”. A imprensa internacional, do New York Times ao Financial Times, defende a permanência do primeiro-ministro, com o argumento de que “a estabilidade tem prioridade sobre tudo” em Itália. Em Roma, todos os partidos, incluindo o anti-establishment Movimento 5 Estrelas, querem evitar umas legislativas antecipadas. É pois possível – e até provável – que o Presidente, Sergio Mattarella, reconduza Renzi mesmo que este lhe entregue a demissão. Seguir-se-ia um governo apoiado pelo PD e pelo centro-direita, com mandato para redigir uma nova lei eleitoral. Isto porque a Italicum está prestes a ser considerada inconstitucional pela Justiça.

Se sair, o que acontece?
Com ou sem Renzi, o cenário de um governo técnico ou de transição, com o encargo de fazer aprovar uma nova reforma eleitoral e de conduzir os destinos do país até 2018, quando já estão previstas novas eleições, é o mais provável. Mesmo que o 5 Estrelas apresente um voto de desconfiança na Câmara dos Deputados já na segunda-feira. É isto que desejam, por diferentes motivos, os partidos (à direita, o candidato pode voltar a ser Silvio Berlusconi, que decidiu regressar depois de fracassados os percursos dos potenciais sucessores), a União Europeia e o mundo da economia.

Diz-se que é o momento “Brexit” de Itália. Porquê?
Para os mercados financeiros e as várias instituições europeias trata-se da maior ameaça desde o referendo britânico sobre a permanência na União. O receio é que a vitória do "não" desencadeie uma série de acontecimentos que incluem a chega ao poder do partido-movimento fundado por Bepe Grillo (humorista que se tornou conhecido com comícios anti-Berlusconi), quase empatado com o PD nas sondagens para as legislativas, e um referendo promovido por este sobre a continuação de Itália no euro. Tratando-se da terceira economia da zona euro (o Reino Unido nunca integrou a moeda única), a incerteza política no país traz sempre um cenário de instabilidade financeira – mas é Itália, um país onde a instabilidade é um modo de vida, pelo que alguns analistas desdramatizam.

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