O adeus ao “último grande romântico e um dos últimos ditadores”

As cinzas de Fidel já estão a poucos metros do túmulo de José Martí. O romancista Yoss espera “tempos obscuros, de mudança e instabilidade”.

A multidão na chegada das cinzas a Santiago de Cuba
Fotogaleria
A multidão na chegada das cinzas a Santiago de Cuba Alexandre Meneghini/Reuters
Dilma Rousseff e Lula da Silva ao lado de Raúl, que fala com Maduro
Fotogaleria
Dilma Rousseff e Lula da Silva ao lado de Raúl, que fala com Maduro Carlos Barria/Reuters
O mausoléu, em forma de rocha, e a placa onde se lê apenas "Fidel"
Fotogaleria
O mausoléu, em forma de rocha, e a placa onde se lê apenas "Fidel" Yamil Lage/AFP
Fotogaleria
O mausoléu, em forma de rocha, e a placa onde se lê apenas "Fidel" Reuters

José Miguel Sánchez, ou Yoss, como assina os seus romances, tem a certeza que o futuro trará “mudanças inevitáveis” na Cuba onde nasceu e vive há 47 anos. Acima de tudo, porque o país “precisa de dinheiro”. Com a morte de Fidel Castro, “morre uma época”, diz. “Muitos dizem que o século XX durou de 1917 a 1991… para mim termina em 2016, com a morte do último grande romântico e um dos últimos ditadores”, que sobreviveu a “Kadhafi, Kim Il-sung [e ao filho, Kim Jong-il], Chávez…”

Como Fidel queria, as suas cinzas foram este domingo depositadas no mausoléu construído em segredo em Santiago de Cuba, onde nasceu e de onde partiu com os seus “barbudos” para derrotar o também ditador Fulgencio Batista, em 1959. Fidel está agora no cemitério de Santa Ifigénia, perto do túmulo de José Martí (1853-1895), herói da independência.

“Não houve discursos. Foi muito simples”, comentou a ministra do Ambiente francesa, Ségolène Royal, enviada de Paris, numa cerimónia onde estiveram os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Bolívia, Evo Morales, assim como os dois ex-chefes de Estado do Brasil Lula da Silva e Dilma Rousseff. “O líder da revolução rejeitava qualquer manifestação de culto de personalidade”, afirmou Raúl Castro na noite de sábado, quando as cinzas chegaram a Santiago.

Fidel, disse o irmão que o substituiu na presidência há dez anos, “insistiu nas últimas horas de vida em rejeitar que o nome seja usado em instituições, ruas, parques ou outros lugares públicos, recusando ainda que fossem erguidos bustos ou estátuas suas”.

“Apesar de se ter afastado do poder, Fidel ainda representava boa parte do capital simbólico da revolução”, diz Yoss. Ao seu irmão, “que, sendo muito pior orador e muito menos carismático, demonstrou ser um administrador e economista menos aventureiro”, cabe “levar Cuba pelo caminho das reformas económicas de que o país precisa com urgência, sem sentir Fidel a gravitar como uma sombra a partir da sua suposta ortodoxia revolucionária”.

Yoss, autor de títulos traduzidos em diferentes línguas como o seu romance de estreia, a distopia Se Alquila Un Planeta, ou Superextragrande, de 2014, descreve como se preparou “para o desaparecimento físico do comandante” ao longo dos anos. “Mas, logo em 2016, com os festejos dos seus 90 anos a serem notícia de abertura em Cuba, parecia mais vivo e imortal do que nunca.”

De viagem à República Dominicana, onde a notícia da morte de Fidel o apanhou, regressou domingo, uma semana antes da despedida final, para uma Havana “caótica” pelo sucedido. “Grande ironia, o homem que resistiu a 11 presidentes norte-americanos extinguir-se menos de três semanas depois da eleição de Donald Trump, talvez o pior de todos para Cuba”, nota este autor de livros de ficção científica e músico de rock, formado em Biologia, numa troca de emails.

Nem figuras novas nem estabelecidas

Yoss quer mudanças, de preferência “mantendo parte das conquistas do socialismo, pelo menos a saúde e a educação gratuitas”. Mas descreve-se “demasiado optimista” e diz que o mais provável é avizinharem-se “tempos obscuros, de mudança e instabilidade” para a sua ilha. Por um lado, mesmo com Trump, não acredita que “falte muito para acabar o bloqueio-embargo” a Cuba. “Assim, espero investimentos americanos em massa, com o custo social que isso representa; desigualdade de classes e criação de uma nova elite económica”.

Mais grave, para Yoss, é a possibilidade de Raúl Castro manter a promessa de sair em 2018. “Na linha da gerontocracia, não há ninguém que pareça digno de herdar a primeira cadeira da república”, defende. Miguel Díaz-Canel, primeiro vice-presidente desde 2013, “o chamado delfim, tem o carisma de um tijolo e nenhum dos líderes da minúscula dissidência o supera”. Yoss admite que possam surgir “figuras novas” mas isso não o descansa. “Desconfio de todos os recém-chegados, e o mau é que também não confio em nenhum dos estabelecidos.”

Sugerir correcção
Comentar