Estudo descreve um SNS feito à custa de “mais trabalho por menos dinheiro”

Trabalho pedido pela Ordem dos Médicos alerta para um "SNS pobre, para os pobres" devido aos cortes dos últimos anos.

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Ao mesmo tempo que se regista este declínio no SNS, o privado tem beneficiado, alertam os autores Maria João Gala

O Serviço Nacional de Saúde (SNS), com os cortes dos últimos anos, aproximou-se de “um modelo do tipo do existente no Estado Novo”, baseado no “assistencialismo e na providência social”. A situação só não piorou devido ao esforço dos médicos e dos restantes profissionais de saúde que aceitaram “trabalhar mais por menos dinheiro”. As conclusões fazem parte de um estudo coordenado por dois investigadores da Universidade Nova de Lisboa, feito a pedido da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos.

“Constrói-se, assim, um SNS pobre, para os pobres”, lê-se no trabalho, coordenado por Raquel Varela e Renato Guedes. De acordo com os autores, o SNS vive uma espécie de regresso ao passado, a situações anteriores à década de 1960. “Devido ao aumento das tarefas, do trabalho e da diminuição do rendimento, estamos a rebentar com as pessoas e estamos a rebentar com o Serviço Nacional de Saúde “, sustentou, Raquel Varela, citada pela Lusa. Segundo a historiadora, no mínimo, vão ser precisos "trinta anos para corrigir a situação", caso exista vontade política.

"Hoje, o que faz funcionar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) com menos dinheiro é o facto de os médicos receberem menos e trabalharem mais. Não são modificações de gestão, melhores condições de trabalho ou controlo de gastos. O que manteve a prestação dos cuidados de saúde são os médicos que passaram a trabalhar mais por menos", acentuou.

“Centro de tratamento de pobres”

"É como se o Serviço Nacional de Saúde (SNS) voltasse ao registo anterior a 1960, em que os hospitais eram centros de tratamento de pobres e, por essa via, de formação – sendo que os médicos após essa especialização passam a atender nos consultórios privados e em clínicas", conclui o estudo.

As conclusões da investigação apontam para uma "evolução miserável" do número de médicos a exercer no SNS, sobretudo tendo em conta os profissionais formados pelo Estado, mas também para a degradação dos cuidados primários. "O número de profissionais médicos a exercer no SNS teve uma evolução miserável se considerarmos o potencial em número de médicos formados desde a década de 1970, em particular, desde a criação do SNS. Verifica-se, nas nossas conclusões, a evolução negativa nos cuidados primários de saúde. Isto é, são formados muito mais médicos pelo SNS do que aqueles que ficam a trabalhar nele", indica o documento.

O estudo estabelece também uma relação entre as várias investigações já realizadas sobre o "burnout" (esgotamento associado ao stress profissional) a que os médicos estão sujeitos desde a aplicação das medidas impostas pela troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), através do Memorando de Entendimento (17 de maio de 2011).  O ritmo de produtividade, refere o texto, está a ser marcado pela utilização da força de trabalho "até níveis próximos do seu limite".

Além disso, os autores defendem que a produtividade nem sempre é acompanhada pela devida qualidade nos serviços prestados – que também nem sempre estão adaptados ao que a população precisa. “Os avanços técnicos possibilitaram um apreciável ganho de produtividade que se reflecte no aumento do volume de produção. Por outro lado, pela acção do mercado, essa produtividade pode ser explorada até a exaustão dos profissionais, reflectindo-se em bons números de execução sem que isso resulte num trabalho dirigido a responder aos problemas de saúde da população”

Benefício para o privado

Ao mesmo tempo que se regista este declínio no SNS, o privado tem beneficiado, alertam os autores. “Em paralelo inicia-se um processo de privatização de empresas públicas bem como a mercantilização crescente dos serviços públicos, sobretudo na área da saúde (por exemplo, mais de metade do orçamento dos hospitais privados é pago por comparticipações públicas, hoje, se somarmos as contribuições directas, 30%, mais os custos de formação da força de trabalho)”, diz o trabalho. E clarifica: “O que aqui se questiona não é a existência dessa situação, mas sim as proporções que ela adquiriu”.

Em perspectiva, o trabalho indica também que, em Portugal, o sistema de saúde "de ponta" só foi alcançado após a revolução de 1974. "A revolução, isto é, a luta política organizada, que gerou uma transferência de 18% do rendimento do capital para o trabalho, em grande medida na criação de um Estado Social, impôs a junção entre previdência e assistência dando o passo fundamental para a criação do SNS, que se oficializou em 1979", conclui a investigação.

Esta situação, prossegue o estudo, criou "de facto" uma "elevação" salarial significativa, permitindo "resultados extraordinários", do ponto de vista do acesso a cuidados de saúde, "colocando Portugal entre os melhores, mais eficientes tecnicamente e mais justos sistemas de saúde do mundo".

A segunda parte do estudo analisa as formas de privatização do sistema público de saúde britânico que criou uma "indústria de cuidados de saúde", transformando um "serviço público essencial em lucro". Além dos académicos portugueses, o estudo incluiu as participações de quatro cientistas sociais anglo-saxónicos: Ursula Huws, Stewart Play, Colin Leys e Peter Kennedy, que se debruçam sobre as formas e consequências da privatização do National Health Service, no Reino Unido.

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