Monarquia? Inadmissível! Ditadura? Pode ser

O mesmo partido que não é capaz de se levantar no Parlamento por respeito e cortesia para com o rei de Espanha, é capaz de dobrar a espinha e patrocinar votos de louvor a Fidel Castro.

O problema de o Bloco de Esquerda não ter aplaudido o rei de Espanha no Parlamento, e de José Soeiro ter andado a passear uma t-shirt com as cores republicanas, não está nem na falta de diplomacia, nem na indumentária infanto-juvenil do senhor deputado. O problema está no terrível contraste entre a postura do Bloco perante a vinda do rei Filipe de Espanha e perante a morte do ditador Fidel de Cuba. São esses dois pesos e essas duas medidas que são indignos e chocantes. Qualquer monarquia constitucional deveria merecer no Parlamento português um respeito político que nenhuma ditadura pode reclamar.

E, no entanto, o que aconteceu esta semana foi o contrário disso. O PÚBLICO inquiriu o Bloco acerca da sua atitude perante Filipe VI e a resposta foi a seguinte: “O Bloco de Esquerda valoriza a importância das relações entre o Estado português e o Estado espanhol. Mas mantém a posição de sempre, republicana, e não naturaliza relações de poder com base em relações de sangue e não em actos democráticos.” Sublinhe-se que também eu acredito que devem ser os votos, e não os genes, a decidir os representantes de um povo.

A contradição está na tão comovente defesa dos “actos democráticos” seis dias depois da morte de Fidel Castro, cujo currículo ao nível dos “actos democráticos” é uma folha em branco. Mas eis o que o Bloco de Esquerda escreveu sobre ele: “Cuba foi o David que derrotou Golias, a miséria endémica suplantada por índices de desenvolvimento humano sem paralelo na América Latina, que extinguiu o analfabetismo e realizou prodígios na ciência e na saúde. (…) Fidel Castro, nos seus erros e nos seus feitos, foi um grande estadista cubano e assim será recordado. Na hora do seu desaparecimento, o Bloco de Esquerda saúda a sua memória.”

O mesmo partido que não é capaz de se levantar no Parlamento por respeito e cortesia para com o rei de Espanha, é capaz de dobrar a espinha e patrocinar votos de louvor a Fidel Castro. Sim, ele cometeu “erros”, mas há três palavras mágicas que nunca são referidas no comunicado do Bloco sobre Fidel: ditadura, democracia e liberdade. Vejam bem: o papel que a monarquia espanhola teve na transição do franquismo e na afirmação da democracia é completamente ignorado pelos bloquistas; mas Fidel, esse, já é um exemplo a ter em conta por todos os povos que buscam a libertação do jugo imperialista – como o povo português, imagino eu.

O Bloco, tal como o PCP e como demasiada gente nestes últimos dias, colocaram sem qualquer pudor a ideologia à frente da democracia. Se quem estiver no poder for da cor política certa, pode suspender-se a democracia não por seis meses, mas por 60 anos. Há dois argumentos aterradores que tenho escutado sem cessar. O primeiro é o índice de desenvolvimento humano de Cuba. Ao assinalarmos a falta de liberdade de expressão e de voto recebemos em troca argumentos sobre a excelência do sistema de saúde e a ausência de analfabetismo.

A liberdade, pelos vistos, compra-se: a partir de um certo nível de vida, as ditaduras tornam-se justificáveis. O segundo argumento é o de que os EUA e muitos países europeus são falsas democracias, ou ditaduras encapotadas. Estes argumentos demonstram que se caíssemos num regime musculado com a ideologia certa haveria um exército de gente capaz de o aceitar sem problemas. Por baixo das t-shirts coloridas há muitas cabeças escuras que têm tanto respeito pelo rei de Espanha como pela liberdade. E isso é francamente assustador.

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