Jorge Figueira: uma viagem ao Douro “mítico” do arquitecto

A paisagem duriense “sempre teve um carácter mítico muito importante na nossa cultura”, defende o arquitecto e professor universitário, em entrevista ao P3. No Douro faz-se uma arquitectura contemporânea que valoriza aspectos económico-culturais da região e dela é reflexo

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Precisamos, com medida e cautela, de um turismo que não esteja só na baixa de Lisboa e do Porto Paulo Pimenta

A viagem do “Vale Abraão” — livro de Agustina Bessa Luís e filme de Manoel de Oliveira — fixa a experiência de Jorge Figueira do ponto de vista da paisagem do Douro. O arquitecto, natural de Vila Real tal como Belém Lima, perdeu a conta às viagens de comboio entre o Porto e o Peso da Régua quando, estudante da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, voltava a casa aos fins-de-semana. Conhece bem o percurso, a região e o “clima indescritível” do Alto Douro Vinhateiro, a completar 15 anos na lista do Património Mundial da UNESCO. Pelas janelas dos comboios “semi-vazios e degradados” da década de 1980, Jorge Figueira via muito abandono numa paisagem quase secreta.

Hoje, o director de departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra aponta a classificação da UNESCO e os “surtos do vinho e do turismo” como essenciais para a mudança da arquitectura e da paisagem duriense. Dividido entre a ideia de camuflar ou destacar um edifício numa região reconhecida internacionalmente, Jorge Figueira (colunista do PÚBLICO) sublinha que “ao longo do Douro (…) existiram sempre pequenas e médias construções a pontuar a paisagem”, como aquelas que via da janela dos comboios que rasavam o rio. “Uma parede cega, sem aberturas, mesmo que com uma certa escala, pode ser um muito interessante testemunho e intervenção na paisagem.”

Qual o papel da classificação do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial da UNESCO na arquitectura contemporânea da região?

A valorização que ocorreu a partir da classificação da UNESCO vem ao encontro daquilo que nós já sabíamos: trata-se de uma paisagem notável e de um sítio de invulgar beleza e arquitectura. Daí decorreu um surto de arquitecturas de adegas, relacionadas com a produção do vinho, sobretudo a partir da crise económica. Há um encontro muito interessante entre a classificação da UNESCO com um momento em que também a produção do vinho, o tirar partido daquele lugar, funcionou bem e resultou do ponto de vista produtivo, económico e cultural. Este Prémio Arquitectura Douro é muito certeiro e importante porque chama a atenção não só para as qualidades naturais e produtivas daquele lugar mas também para as arquitecturas contemporâneas que se fazem lá e que valorizam todos estes aspectos económico-culturais da região.

Camuflar os edifícios entre os socalcos ou chocar: qual será a maior tendência?

No fundo, acho que há essas duas tendências. Há a tendência natural de fazer uma arquitectura muito integrada naquela paisagem, camuflada, acrescentando com muita cautela e prudência a arquitectura artificial à natural do Douro. E depois há outra inclinação, igualmente interessante, que é, apesar de tudo, perceber que ao longo do Douro e da paisagem existiram sempre pequenas e médias construções a pontuar a paisagem. Com a devida proporção, escala e cuidado, são também formas interessantes de homenagear a paisagem. Ou seja, a certa altura, pontuar, mostrar o edifício, mostrar as paredes, a estrutura, não a camuflar, pode ser também uma forma de homenagear e estar em relação com a paisagem.

Essas duas tendências coexistem pacificamente?

Ambas fazem sentido. Se fosse convidado para fazer uma dessas adegas, teria que escolher. E, para isso, só projectualmente, estando em cada lugar. Provavelmente, há determinados sítios onde faz mais sentido camuflar e outros onde faz mais sentido pontuar. Também pode ser uma questão do contexto, da dimensão do programa. É uma discussão interessante. Muitas vezes, as pessoas dizem ou pensam: “Estar camuflado, enterrado, é a melhor forma de integrar na paisagem”. Pode não ser exactamente assim, por obrigar a uma escavação ou a um tratamento do terreno tão violento que, na verdade, pode parecer ecológica e paisagisticamente correcto mas não ser a solução mais correcta. É uma solução com um custo do ponto de vista da escavação e de alteração da estrutura topográfica que pode não fazer sentido. Por mais contraditório que possa parecer, mostrar o edifício e pontuar a paisagem pode ser uma forma mais paisagisticamente correcta de intervir no lugar. Esta ideia de enterrar tudo pode ser uma boa posição, a ideia de camuflar também seguramente é uma ideia defensável, mas, em qualquer dos casos, é preciso não tomar isso como uma espécie de receita, um modo de resolver problemas.

Os socalcos são elementos que definem a paisagem duriense. Considera que existem elementos em comum na arquitectura da região?

Só um estudo desenvolvido poderá dizer isso. Tenderia a ser cauteloso em relação à ideia de haver traços comuns. Obviamente, qualquer intervenção naquele lugar vai tirar partido da vista, da relação de perspetiva que se tem com o resto da paisagem. Isso pode ser feito de uma forma mais aberta e sem nenhum filtro ou camuflagem, ou pode ser uma coisa mais indirecta e intimista. Para mim, não é muito evidente considerar a existência de um traço comum nas intervenções. A não ser —na via da camuflagem ou de pontuar a paisagem — um extremo cuidado da parte dos arquitectos por estarem a trabalhar num sítio privilegiado, único e património mundial. Teríamos de ver caso a caso. Hoje, a arquitectura tem um manancial de hipóteses de janelas, aberturas, e outros do ponto de vista técnico, que se trata de uma questão de contexto e de programa. Acredito que há edifícios com esse sentido de reserva, intimista, como há outros que gostam de se expor e remetem um bocadinho para a tradição de pontuar a paisagem. Tenho na memória esses edifícios que pontuam a paisagem serem fechados, não terem muitos vãos. Tratando-se de uma adega ou de edifícios que precisam de se proteger da luz e do sol, muitas vezes são edifícios com paredes cegas, é um confronto muito bonito e artificial com aquela paisagem. Uma parede cega, sem aberturas, mesmo que com uma certa escala, pode ser um muito interessante testemunho e intervenção na paisagem.

Recuperar e modernizar: o Douro é um bom exemplo destes dois tempos de arquitectura?

Acho que sim, embora haja muito caminho a percorrer. A questão do caso a caso, da prudência e do controlo paisagístico é fundamental. Sabemos que a reabilitação de estruturas existentes é absolutamente fundamental e há casos — em todo o lado, mas também no Douro — de reabilitações que se articulam com novas intervenções. Isso, hoje em dia, acaba por ser quase um acto natural. Reabilitar estruturas existentes é quase uma obrigação moral que existe em toda a sociedade e para a qual os arquitectos portugueses estão bastante preparados. Sempre trabalharam no património, não é de agora. A arquitectura do Porto sempre teve a ver com as chamadas pré-existências e o diálogo com os sítios, a topografia, as medidas, os muros e as pedras existentes. Essa componente da reabilitação surge com muita naturalidade na arquitectura portuguesa contemporânea.

Quando é que a grande arquitectura chegou ao Douro?

A declaração de Património Mundial de 2001 foi um arranque mas foram precisos alguns anos mais para começar a haver este desenvolvimento e esta presença da arquitectura. Teria de ver com mais detalhe as datas dos edifícios mas a minha percepção é de que, provavelmente, arrancou com a classificação da UNESCO, ainda que tenha sido muito agudizado — e uma resposta muito boa e consequente — a partir da crise de 2008, com excepção da questão de Foz Côa. A competição que Portugal tem e pode ter no quadro da produção de vinho é algo que se começou a sentir mais nos últimos seis, sete ou oito anos e está também relacionada com o surto de turismo presente por todo o país mas que, neste caso, é bom. Precisamos, com medida e cautela, de um turismo que não esteja só na baixa de Lisboa e do Porto. Seria altamente benéfico, também por descentralizar o turismo das grandes cidades.

Que diferenças consegue traçar, ao nível da paisagem, entre os anos em que fazia a viagem de comboio Porto-Régua até aos dias de hoje?

Um dos pontos para mim cruciais é a ferrovia. Tenho muito presente o modo como, nessa viagem entre o Porto e a Régua, o comboio se aproximava perigosamente do Douro e fazia umas tangentes muito bonitas, atravessando as rochas num percurso extraordinário. Quando fazia essa viagem, em comboios semi-vazios e degradados, no final dos anos de 1980, a paisagem era abandonada, arcaica, uma espécie de segredo de quem a atravessava e escrevia sobre ela. Sempre teve um carácter mítico muito importante na nossa cultura. A classificação da UNESCO e estes surtos do vinho, da arquitectura e do turismo são uma enorme alegria, proporcionou uma revitalização e um relançamento daquilo que nós, transmontanos, secretamente sabíamos ser um sítio mágico e único. E que, no nosso contexto português, tem uma singularidade muito especial.

Hoje já não se sente tanto esse abandono?

Hoje é diferente. Não sou especialista mas, mesmo no tratamento da produção, percebo de forma amadora e intuitiva que a própria paisagem está mais trabalhada e cuidada. E isso é uma enorme satisfação. Que, desde logo, a arquitectura contemporânea esteja ligada a esse processo é um motivo de grande alegria.

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