Alepo e nós

Como seria se tropas da UE, sob pretexto de perseguirem terroristas do ISIS que estão noutra parte do país, tivessem decidido bombardear as posições de Assad a população de Damasco com muito mais poder do fogo do que alguma vez tivessem usado na luta contra o terrorismo?

Alepo, na Síria, está a ser esmagada por decisão de Vladimir Putin. As centenas de milhares de habitantes que restam, sem ter para onde ir, esperam pelas bombas ou pela morte ou por um campo de prisioneiros. Tudo isto se passa perante a impotência frustrada de alguns de nós e a indiferença estudada de outros.

Já sabemos que para muita gente, nas redes sociais e nas mesas de cafés, qualquer erro da União Europeia é um crime. Mas não devemos por isso imaginar que para as mesmas pessoas qualquer crime de Putin seja um erro. Os seus apoiantes e admiradores, que os há à esquerda e direita e até à extrema-direita hoje em dia, não lamentam o que ele faz; deixam passar em silêncio à espera que ele acabe o serviço ou só aprovam sob anonimato, nas caixas de comentários da Internet. Guardarão os seus discursos anti-intervencionistas para quando a intervenção de Putin na Síria estiver terminada.

Entretanto, gastarão as suas forças em criticar a UE por fazer demasiado em relação aos refugiados — segundo a extrema-direita putinista — ou por fazer demasiado pouco — segundo quem quer que tenha um pingo de humanidade e de respeito pelos direitos humanos, no que estarei com eles. Mas isso não me impedirá de notar que a intervenção de Putin na Guerra da Síria está a anos-luz de distância, na escala e nas consequências nefastas, das políticas da União Europeia na mesma região, mesmo quando são pautadas por uma ilegalidade (que denunciei aqui) como a do acordo com a Turquia sobre os refugiados. E que deixar passar essa diferença de escala com um encolher de ombros como se nada fosse não constitui senão um branqueamento do imperialismo mais desbragado no preciso momento em que ele está a cometer os seus crimes de guerra.

Tratar os erros da Europa por crimes e os crimes de Putin por erros (ou até por acertos) não significa que ambos os lados não cometam erros e/ou crimes. Significa apenas que há quem esteja sempre disposto a justificar uns e a condenar os outros não em função do ato mas de quem o comete. Se for personagem da sua preferência, tudo bem; se não o for, tudo mal. Como seria se tropas da UE, sob pretexto de perseguirem terroristas do ISIS que estão noutra parte do país, tivessem decidido bombardear as posições de Assad a população de Damasco com muito mais poder do fogo do que alguma vez tivessem usado na luta contra o terrorismo? Duvido que alguém deixasse escapar a fraude sem a denunciar.

A tendência para desculpar ou até apoiar Putin apenas porque ele chateia as pessoas com quem estamos frustrados, de Merkel a Obama e aos eurocratas, anda há demasiado tempo a ganhar força sem que seja posta em causa. A virulência com que o campo pró-Putin ataca os seus adversários tem ajudado a desequilibrar o debate e a silenciar a crítica, como é aliás seu objetivo.

Posso apenas lançar um alerta a todos aqueles que de forma bem-intencionada acreditam que aceitar o imperialismo russo é uma forma de limitar o imperialismo norte-americano. Considerem a possibilidade de estar enganados: historicamente, os imperialismos conviveram bem entre si desde que consigam dividir o mundo em esferas de influências. É isso que Putin quer e que Donald Trump lhe está disposto a dar. Isso não só tornará certas regiões do Leste europeu mais sujeitas ao poderio russo como não deixará de nos tornar a nós mais vulneráveis ao poderio dos EUA. Ficaremos menos, e não mais, independentes, e só escaparemos a este destino se formos capazes de reforçar e democratizar a construção da União Europeia.

Quanto àqueles que torcem deliberadamente para que Putin leve a cabo o seu plano, direi apenas que a sua co-responsabilidade moral pelo esmagamento de Alepo não será esquecida.

Sugerir correcção
Ler 37 comentários