“Continuo a ver-me como um kamikaze

Em 2004 fez uma canção “suicida”, qual “formiga desafiando o elefante”, José Eduardo dos Santos. Em liberdade depois de um processo que pôs o mundo a falar dos direitos humanos em Angola, Luaty Beirão, aliás Ikonoklasta, volta ao rap. Este sábado, em Lisboa, ele e MCK fazem “exorcismo”.

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Este concerto já devia ter acontecido. No início de Novembro, Ikonoklasta, o nome de rapper de Luaty Beirão, e MCK deviam ter actuado no Chá de Caxinde, em Luanda. Em cima do acontecimento, o concerto foi impedido pelas autoridades e o mesmo voltaria a acontecer noutra sala. A Amnistia Internacional denunciou a “censura de Estado”. No dia seguinte ao segundo concerto cancelado, Ikonoklasta e MCK actuavam na Internet para um público muito maior.

“Não tenho bem a certeza, mas foram cerca de seis mil pessoas a ver, de todo o mundo”, conta, em entrevista ao PÚBLICO em Lisboa, Luaty Beirão, o rapper e activista de 35 anos, cuja prisão, em Junho de 2015, por supostos “actos preparatórios de rebelião”, e posterior greve de fome de 36 dias puseram o mundo a falar dos direitos humanos em Angola.

A estreia atribulada dos Ikopongo, o projecto que une Ikonoklasta e MCK, dois nomes de referência do rap angolano, é mais um episódio da forma como o hip-hop político procura superar as dificuldades criadas pelo governo de José Eduardo dos Santos – uma “luta permanente”. “A ideia [de transmitir on-line o concerto] era mostrar que contornamos os obstáculos e vamos sempre encontrar formas de subir esses muros ou de quebrá-los, de mostrar uma resistência e uma não aceitação, uma não conformação”, diz Luaty.

Este sábado, na festa do décimo aniversário do Musicbox, em Lisboa, os Ikopongo estreiam-se ao vivo em carne e osso. “A ideia de eu e o MCK fazermos algo juntos é muito antiga – ele acabou por se emocionar de mais e prometer um álbum nosso, em 2014 ou 2013, e não gravámos nem sequer uma música. Depois, estive preso e [houve] toda essa confusão.”

Depois de Luaty sair da prisão de Calomboloca, em Junho passado, um amigo lançou-lhe uma “provocação”: fazer um concerto com MCK. “Comecei a arranjar as minhas desculpas de sempre – ‘não tenho tempo’, ‘estou muito dedicado a estas coisas’, ‘tenho o processo [judicial]’, ‘tenho muitas coisas na minha cabeça’. Mas, por provocação, perguntei ao MCK e ele disse: ‘Pensei que não querias! Vamos fazer isso.’”

Ensaiaram durante dois meses uma “coisa muito bonita”. Luaty escreveu letras na cadeia, mas, no que diz respeito ao seu repertório, o que será apresentado no Musicbox são sobretudo músicas antigas, que continuam “actuais porque as coisas [em Angola] não mudaram muito”. “É uma espécie de catarse, uma espécie de exorcismo das coisas más que a gente acumula vivendo naquele país, que é muito intenso.”

Armado só de retórica

Ikopongo é um novo episódio no intermitente percurso de Luaty Beirão enquanto músico. Estima ter distribuído pela Internet “mais de 100 músicas”, desde que começou a rappar em 1994, mas não lançou nenhum álbum. “Tenho muita gente a chatear-me para fazer isso”, confessa.

A música – que “nunca foi um compromisso”, nem uma carreira – e o activismo andam há muito tempo juntos. Em 2004, MCK telefonou-lhe: testemunhas tinham denunciado que elementos da guarda presidencial angolana afogaram no embarcadouro do Mussulo o lavador de carros Arsénio Sebastião por cantar um tema de MCK que criticava o governo. Revoltado com aquela morte “aberrante”, Ikonoklasta escreveu o seu rap mais furioso até então, Sou um kamikaze angolano e esta é a minha missão. Nele declara: “Culpado da miséria no país não é só um/ mas o principal, não é segredo, chama-se Zedu”. Zedu é José Eduardo dos Santos, claro.

Em 2011, Luaty, um “filho do regime” (é filho de João Beirão, primeiro presidente da Fundação Eduardo dos Santos), surpreendeu todos num concerto dirigindo-se a Danilo dos Santos, filho do Presidente angolano, presente na audiência. “Senhor Danilo, se está aí, vai dizer ao teu papá. Diz, por favor: não queremos mais ele aqui. 32 [anos de poder] é muito. É muito!”, proclamou a partir do palco. Ao PÚBLICO, Luaty diz que desde esse episódio o governo apostou em reprimir mais a liberdade de expressão dos artistas, criando um sem-número de burocracias que são apenas exigidas aos músicos incómodos.

Em 2012, foi alvo do que diz ser uma “tramóia”, uma cilada – no aeroporto de Lisboa, foi encontrada cocaína na sua bagagem. Acabaria por ser libertado. “Por mais cocaína que me enfiem na roda/ defendo a minha utopia/ armado só de retórica”, declarou no tema Fortificando a desobediência, com DJ Pelé.

A prisão, por outros motivos, chegaria a 20 de Junho de 2015. Luaty e outros 16 activistas foram detidos quando liam uma adaptação da obra do pacifista Gene Sharp Da Ditadura à Democracia. Parte do diário que Luaty escreveu na cadeia está agora em livro, Sou Eu Mais Livre, Então – Diário de um Preso Político Angolano (Tinta-da-China).

Estes casos, denuncia, são sintomas do “desespero” de um regime que “está com medo” do seu fim, o que o leva a apertar a repressão. E o hip-hop político, como fica? “Mais marginalizado”, “feito por pequenos grupos de resistência em espaços onde não consegues meter mais de 50 pessoas”. Muitas salas de espectáculos deixaram de “aceitar” músicos críticos. “As pessoas percebem que é uma situação de perigo iminente, que podem ser ameaçadas e que podem não se conseguir realizar enquanto artistas porque não vão ter espaço, as portas vão estar fechadas. Então, mesmo aqueles artistas mais pesados, mais hardcore, preferem não tocar em certos assuntos ou [fazê-lo] apenas tangencialmente, sem aprofundar. Perdeu qualidade, nesse aspecto”, reflecte.

O juiz rapper e a esperança

A conjuntura actual é o que é, mas, para Luaty, o hip-hop angolano deixou sementes no país. Refere que a “geração hip-hop que vem dos anos 90 até princípios de 2000” “formou muita gente”, “mais do que muitas universidades lá em Angola”.

“No momento em que fui preso, fui interrogado por um procurador. O escrivão era rapper e contou-me que havia um rapper que se tornou juiz. Tem polícias que nos recitam as nossas rimas, que nos dizem, com toda a sinceridade e todo o coração, o impacto que tiveram nas vidas deles para os desviar de certos caminhos maus e lhes dar certos valores. Há algo de real na nossa juventude, que agora está a começar a assumir cargos e está a criar empresas e está a ter cargos públicos, influenciado por esta fase do rap. O hip-hop não deixa de ser uma esperança”, diz.

Ele continua a rever-se nas letras de Sou um kamikaze angolano e esta é a minha missão. Antecipava, então, levar um “balázio na testa” assim que voltasse a Luanda (quando a escreveu, estava no estrangeiro, onde estudou), quando se dizia “formiga desafiando o elefante”, um entre muitos de um “povo exausto de subserviência”. Os acontecimentos que se seguiram quase confirmaram o título da canção. “Tornou-se mais real, mais concreto”, reconhece. “As pessoas gostam de dizer: ‘Tu tens rimas que são proféticas.’ Não sei se são proféticas. Continuam a estar dentro do contexto, infelizmente, 12 anos mais tarde. É uma tristeza lamentável.”

“Quando a cantei pela primeira vez em Luanda, tive receio de que me acontecesse alguma coisa. E sempre que a canto tenho essa sensação de que alguém na plateia possa agir, fazer-me mal”, confessa. “Continuo a ver-me como um kamikaze porque acho que posso voltar a ser preso e podem fazer-me coisas piores ainda.”

Não quer ser mártir – “tenho uma família, tenho uma filha que gostaria de ver crescer” – nem herói. E cita um rap seu em que diz “Herói? Nada disso”. E ainda, mais à frente: “Eu gosto de estar vivo, só odeio estar calado."

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