Comer a realidade com Boris Charmatz

O coreógrafo francês mostra em Lisboa e no Porto uma coreografia de digestão lenta para bocas que cantam e comem papel: Manger.

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Aqui, dançam sobretudo as bocas dos bailarinos. Mas não foi pela boca que tudo começou URSULA KAUFMANN
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Aqui, dançam sobretudo as bocas dos bailarinos. Mas não foi pela boca que tudo começou URSULA KAUFMANN
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Aqui, dançam sobretudo as bocas dos bailarinos. Mas não foi pela boca que tudo começou BENJAMIN BOAR
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Aqui, dançam sobretudo as bocas dos bailarinos. Mas não foi pela boca que tudo começou BROTHERTON LOCK
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Aqui, dançam sobretudo as bocas dos bailarinos. Mas não foi pela boca que tudo começou BROTHERTON LOCK
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Aqui, dançam sobretudo as bocas dos bailarinos. Mas não foi pela boca que tudo começou BROTHERTON LOCK

Em Manger, come-se. O título da peça de Boris Charmatz não está lá para enganar. Mas o coreógrafo não oferece aos seus bailarinos nenhum banquete, não há travessas de escargots, foie gras, ratatouille ou qualquer outro manjar mais ou menos acostumado aos palatos franceses. Em Manger, os bailarinos comem papel, que é como quem diz que devoram a realidade. E isto porque Charmatz começou a pensar na forma como a contemporaneidade nos senta diante de uma televisão a mastigar snacks e todo o tipo de comida pré-cozinhada enquanto assistimos a imagens de aviões caídos na noite, bancos caídos em desgraça ou gente caída de amores – tanto faz. “Na verdade”, diz o coreógrafo ao PÚBLICO, “não é a comida que se engole, mas sim as notícias. Digerimos a informação para não termos de gritar contra ela, para não reagirmos e para criarmos uma distância. Pensamos que estamos a comer cordeiro, fruta ou vegetais, mas estamos verdadeiramente a digerir a situação.”

Da mesma forma, quando Boris Charmatz nos senta num jantar de família acredita que estamos à mesa não tanto para petiscar algum prato passado de geração em geração mas antes para digerir as relações e as dinâmicas familiares. A ideia por trás de Manger é, portanto, a de que comer é sempre uma imagem feita de abstracção e não tanto uma necessidade a satisfazer regularmente. Daí que, depois de ter experimentado pôr os bailarinos a comerem codornizes, pelo efeito de desse acto sobrarem esqueletos em que viu todo um potencial coreográfico, Charmatz tenha preferido distribuir 10 a 15 folhas A4 a cada um dos performers que estarão sexta e sábado na Culturgest (Lisboa) e quarta-feira no Mosteiro de São Bento da Vitória (Porto). “Sendo uma superfície branca, o papel é algo em que podemos projectar o que quisermos – notícias, jornais, contratos de trabalho, ecrãs de cinema, etc.”

(Não se aflija quem pensar nos pobres estômagos dos bailarinos. As folhas A4 são feita do mesmo tipo de papel comestível que aos domingos é distribuído nas igrejas católicas e em que se projecta o corpo de Cristo. Mas Manger é, na verdade, uma peça de tal forma visceral que exige dos espectadores estômagos não demasiado sensíveis.)

Numa igreja ou numa rua

Em francês, chama-se boulette às bolas de pêlo regurgitadas pelas corujas e outros animais noctívagos depois de ingerirem, por exemplo, um rato. Em Manger, também há boulettes: algum do papel que entra na boca dos intérpretes para ser mastigado é depois devolvido ao exterior e serve para fazer pequenas esculturas ou bolas que frequentemente acabam no chão. No mesmo chão que o público pisa, porque não há separação entre palco e plateia; no mesmo chão que é a mesa de refeições e onde a dança, “considerada pura”, se deixa sujar por essa coisa tão primária que é comer. Mais uma forma assumida de Charmatz, conhecido pelas suas propostas no limite, encaminhar a peça para o desconforto.

Aqui, dançam sobretudo as bocas dos bailarinos. Mas não foi pela boca que tudo começou. Num trabalho com estudantes em Hamburgo, o coreógrafo sugeriu a criação de uma “exposição que duraria um dia e se basearia na vida de um bailarino”. Começaria pelo aquecimento, passaria por um ensaio matinal, seguido de almoço, sesta e espectáculo, terminando numa festa. Quando perguntou aos alunos por que parte queriam começar, a maioria manifestou-se a favor do almoço e quis trabalhar sobre a imagem de uma refeição volante. Charmatz deixou-se seduzir pelos argumentos a favor de algo que colocasse a boca em destaque, que dispensasse mesa, cadeiras e talheres, que pudesse tocar na anorexia e limitar a mobilidade. E começou a pensar como se tornou comum as refeições fazerem-se numa carruagem do metro, em movimento pela rua, como se todos fôssemos maratonistas sem alternativa a levar qualquer coisa à boca que não atrapalhe o passo de corrida. “Gosto que isto seja o oposto de trabalhar com um trampolim”, diz. “Comer pára ou mantém a dança numa posição mínima e estranha.”

Manger desenrola-se por ondas. Embora dispersos, rodeados de espectadores que circulam livremente entre os vários espaços de acção, os bailarinos transitam de momentos quase religiosos e em transe (cantando excertos de peças de Beethoven ou Ligeti) para sequências agressivas e descontroladas, como se os papéis que continuamente enfiam na boca os sufocassem e desvairassem. “Eles estão sozinhos, mas ao cantarem juntos conseguem estar mais próximos uns dos outros”, justifica o coreógrafo. “Tentam alcançar os outros através da música. Por outro lado, a partitura integra tanto música antiga ou sacra quanto rap, poesia e outros sons, como se fosse a porta para um espaço mental, uma paisagem sonora que faz com que possamos estar numa igreja, numa manifestação de rua ou em qualquer outro lugar.”

Mas quando essa porta se fecha não estamos numa igreja ou numa rua. Estamos diante de bailarinos que recomeçam a mastigação, enchem a boca para se silenciarem e fecham dentro de si tudo aquilo que poderiam ter para dizer. Para eles a peça é tão dura que, confessa Charmatz, só a fazem porque gostam realmente da direcção que tomou.”Mas ficam muito felizes quando voltam aos seus projectos para fazer peças mais leves.” Comer papel pesa no estômago. E não é pouco.

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