Nas antecâmaras do pós-feminismo

Private, de Alexandra Bachzetsis, abriu o programa Bom Dia, Atenas!.

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Uma mulher morena, de camiseta de latex e calças negras, sentada diante de um espelho montado num pequeno tripé, maquilha-se enquanto o público se acomoda no anfiteatro. Um linóleo de padrão branco e preto, a sugerir um pavimento cerâmico doméstico, cobre parcialmente o chão; peças de roupa pousam numa cadeira, e ao lado, um par de botas e de sapatos, e um alguidar branco. A atitude da mulher é a de quem se sabe observada, num jogo dúplice, entre a privacidade da cena e a sua exposição ao público.

Nos 53 minutos seguintes, a figura irá transfigurar-se no negrume semivazio do palco: desenrolada, a camiseta de latex transforma-se num comprido vestido coleante; pede a um homem da assistência para o molhar com um borrifador e, ao som instrumental do standard pop When a man loves a woman (Percy Sledge, 1966), meneia as ancas, sob o material brilhante humedecido, enquanto fita o público, provocante, na sua expressão carregada de eyeliner e blush. Desmaquilha-se, retira o cabelo postiço, muda para um fato-de-treino ou fica em roupa interior: um friso de imagens, em que a transição entre diferentes aparências e poses do corpo vai trazendo alusões furtivas às assexuadas acções comuns da dança pós-moderna, à gestualidade andrógina de Mikael Jackson ou aos clichés sensuais da dança oriental; push-ups de ginástica ou dança aeróbica derivam em posturas de ioga ou movimentos de stripper. Depois, de fato masculino negro, interpreta uma versão travestida do folclore grego zeibekiko (dança improvisada, tradicionalmente interpretada por homens). Com a canção rebétiko (música popular urbana, equivalente ao fado) entoada ao vivo, no final, aquela será a única conexão directa com a cultura grega (ou com o seu imaginário) na peça que abriu este Bom Dia, Atenas!, o festival desenhado para trazer a Lisboa a cidade criativa que pulsa e resiste para além das imagens de crise que dela nos chegam.

Private, de Alexandra Bachzetsis (Zurique, 1974), coreógrafa, performer e artista visual de origem grega radicada na Suíça (apesar de circular bastante na Europa, é pouco conhecida no seu país), é um fresco sobre a questão das representações da mulher no mundo de hoje: ao justapor (e contrapor) referências à cultura popular mainstream (as indústrias do espectáculo, do sexo, da moda ou dos media) a práticas do quotidiano ou à dança contemporânea, Bachzetsis quer construir um ensaio performativo sobre o quanto a interiorização dos papéis de género resulta da repetição de práticas corporais culturalmente reguladas.

Este olhar crítico, de artista-antropóloga, parece, contudo, não conseguir encontrar um fio condutor veemente dentro do seu próprio território referencial. Por um lado, o apagamento de fronteiras entre cultura erudita e popular é um tema há muito incorporado nas artes performativas. Por outro, o que a peça tem de acessível perde-o na quase evidência das metáforas geradas: amiúde, esgotam-se em si mesmas, e poucas vezes delas se descolam universos poéticos ou associações mentais para além daquelas que têm vindo a ser produzidas pelos estudos de género nas últimas décadas.    

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