Ou a RTP muda, ou teremos de mudar a RTP

Quem manda na RTP não se dará conta disso; mas, se não fosse o 1.º de Dezembro, a Rádio e Televisão de Portugal não existiria — teríamos a TVE.

A Lei da Televisão fixa como fins da actividade televisiva “contribuir para a informação, formação e entretenimento do público”“promover a cidadania” e “difundir a cultura portuguesa e os valores que exprimam a identidade nacional”. Ora, se tivéssemos que nos deitar a pensar num evento que reunisse tudo isto ao mesmo tempo, o Desfile Nacional de Bandas Filarmónicas 1.º de Dezembro está nesse elenco reduzido: informa, forma e entretém; promove a cidadania; difunde cultura portuguesa; difunde os valores da identidade nacional.

A RTP deve, portanto, transmitir o desfile, na íntegra e em directo, como fez, com agrado geral, em 2013 e 2014. Há um ano, recuou para um diferido muito mal tratado. Agora, nem isso. Irá fazer ligação a alguns momentos, em doses homeopáticas, um poucochinho de vez em quando, recuando, contrariada, para o improviso a que recorreu na estreia, em 2012. Está mal. Está mesmo muito mal.

Aquele preceito da lei aplica-se a todas as televisões, pelo que, dirão, todas deveriam estar no desfile. É uma boa observação e um bom argumento. Mas a RTP tem um dever superlativo, uma obrigação acrescida em tudo o que respeita ao interesse público. É o que resulta da lei e da própria noção de serviço público. Aí se enquadra a obrigação legal de a RTP ter “uma programação que promova a formação cultural e cívica dos telespectadores” e a incumbência de “promover o acesso do público às manifestações culturais portuguesas”. Não é que o 1.º de Dezembro e o Desfile Nacional de Bandas aqui estão a espreitar outra vez?

Se lermos o Contrato de Concessão de 2015, encontramos, como é natural, mais numerosos pontos de apoio a que a RTP não desvalorize o 1.º de Dezembro e transmita em directo um acontecimento com a grandiosidade do desfile nacional. Neste ano, irão estar na Avenida da Liberdade e Praça dos Restauradores 35 bandas filarmónicas e grupos de todo o país, incluindo, pela primeira vez, dos Açores, encerrando com um final espectacular, que congrega em orquestra gigante mais de 1700 músicos tocando ao mesmo tempo. O país não poderá seguir o desfile, porque esta administração e esta direcção decidiram não transmitir.

Quem manda na RTP não se dará conta disso; mas, se não fosse o 1.º de Dezembro, a Rádio e Televisão de Portugal não existiria — teríamos a TVE. Não haveria 1.º de Dezembro, é certo; e não haveria RTP também. É assim tão simples. É por isso particularmente deplorável este recuo decadente da cultura dirigente da estação pública, um recuo que é o regresso, por outra porta, do mesmo espírito que desvalorizou a data para matar o feriado. Agora, ironia do destino, temos feriado e celebrações para a frente; e temos RTP para trás.

É reprovável ainda a desconsideração e a ofensa feitas, em geral, às bandas filarmónicas e, em paralelo, aos municípios.

Em Portugal, há 750 bandas filarmónicas — e ainda mais umas dezenas nas comunidades portuguesas no estrangeiro. Muitas são centenárias e mais que centenárias. Há as extraordinárias bandas militares; e há as notáveis e laboriosas bandas civis, praticamente em todos os concelhos do país. São, as mais antigas e as mais novas, extraordinários conservatórios populares, que ensinam música pelo país inteiro, gerações atrás de gerações. Dá gosto ver, em cada um dos desfiles na Avenida, ao lado dos mais velhos, revoadas de rapazes e raparigas a tocar brilhantemente, com alegria, brio e competência, num animador sinal de raiz e de futuro. Além dos serviços culturais que prestam a nível local, as bandas estão muito irmanadas com o 1.º de Dezembro e o seu espírito — muitas nasceram no último quartel do século XIX, tendo bebido da matriz que atravessou a época e viria a dar origem ao feriado; outras estrearam-se no 1.º de Dezembro; outras denominam-se mesmo 1.º de Dezembro; e outras ainda são o eixo de animação de largas dezenas de celebrações populares do 1.º de Dezembro que ocorrem por todo o país, com o descaso da comunicação social. A RTP deveria acarinhar e dar a conhecer, na linha do serviço público. Mas esta RTP escolhe fazer ao contrário: redu-lo ao silêncio, que é o irmão mais velho da ignorância.

Triste sorte esta a de vermos imperar na RTP um olhar queque e betinho, diante de uma tão vibrante, tão rica e tão espectacular expressão da cultura popular portuguesa. Pior: desvaloriza o facto de estar a começar a construir-se, graças ao envolvimento decisivo da Câmara Municipal de Lisboa e à resposta entusiástica das bandas filarmónicas, com a generalidade dos municípios, o que se constituirá sem dúvida em poderosa tradição. Esta RTP olha, mas não vê; ou vê, mas não entende. Tem uma linha superficial e sobranceira, de vulgar pronto-a-vestir – uma mentalidade avessa ao serviço público que a leva a afastar-se do acerto em que já esteve.

Desta forma a RTP não é “a nossa televisão”. E, assim sendo, os mecanismos institucionais terão de agir. Ou a RTP muda, ou teremos que mudar quem manda na RTP.

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