Depois de bater no fundo, relação Portugal-Espanha recomeça

Suspensas três vezes em sete anos, as cimeiras entre Portugal e Espanha vão ser retomadas. O ministro Augusto Santos Silva faz uma leitura da visita dos reis de Espanha e antecipa próximos passos.

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Os reis de Espanha estiveram em Portugal durante três dias Ricardo Castelo\Nfactos

Agora que as relações entre Portugal e Espanha reentraram na normalidade, os dois países estão a afinar a próxima cimeira bilateral, um clássico da política externa ibérica interrompido três vezes nos anos da crise europeia.

Já está acertado que a cimeira será em Maio, que o tema principal são as regiões transfronteiriças e que a própria reunião vai saltar fronteiras: começa numa cidade espanhola e acaba numa portuguesa.

Desta forma simbólica, os dois governos querem mostrar uma coisa que não se vê nem do litoral nem dos grandes centros urbanos: para a população que vive perto da fronteira, “do ponto de vista económico não há lados — porque não há fronteira”, disse ao PÚBLICO o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, durante a visita dos reis de Espanha a Portugal.

O “potencial transfronteiriço” percorreu muitos dos encontros e reuniões destes três dias da visita de Estado de Felipe VI e todos os discursos públicos feitos em Guimarães, no Porto e em Lisboa. Na terça-feira, ao propor um brinde no último jantar de gala, no Palácio das Necessidades, António Costa disse que “um dos grandes objectivos de Portugal” é “melhorar a cooperação transfronteiriça” e “olhar para a nossa península como um todo”. E na quarta-feira, na Assembleia da República, horas antes de deixar Portugal, o rei incluiu o tema no seu discurso, politicamente o mais relevante.

A cooperação transfronteiriça está no Plano Nacional de Reformas do Governo e espera-se para breve a discussão, em conselho de ministros, das 155 medidas propostas pela Unidade de Missão para a Valorização do Interior, criada em Março. Santos Silva explica: “Se medirmos todos os distritos que têm capitais a menos de 50km da fronteira, do lado português e do lado espanhol, temos uma população de seis milhões de pessoas. O desafio é tornar essa faixa de população num mercado económico. Podemos ver o interior como um lugar que está longe do litoral e dos grandes centros. Ou podemos ver o interior como a região que intercepta melhor com a grande região que é o centro peninsular.”

A visita dos reis de Espanha e o retomar das cimeiras ibéricas, nascidas em 1983, são particulares a vários níveis. Uma é notória: acontecem quando as relações Portugal/Espanha “estão num ponto alto depois de terem estado no seu ponto mais baixo de sempre”, como resume o investigador do IPRI Carlos Gaspar. Em 2009, “o primeiro-ministro socialista Zapatero virou costas a Portugal” e suspendeu as cimeiras luso-espanholas de 2010 e de 2011. Madrid temia o contágio e o efeito de dominó se Portugal tivesse de ser — como foi — resgatado pela troika, e fez passar, de forma não oficial, a mensagem de que a “Espanha não é Portugal”. “A suspensão unilateral não foi vista por Portugal como uma surpresa, mas não foi bem vista”, diz Daniel Marcos, historiador e também investigador do IPRI-UNL.

Passos Coelho chegou a ter uma cimeira com Rajoy, mas o retomar da normalidade foi selado em Outubro, quando Costa visitou Madrid mal o primeiro-ministro espanhol tomou posse (depois de um ano de instabilidade e razão pela qual ambos acordaram adiar a cimeira bilateral anual) e mostra que as relações entre os dois países estão para além dos partidos (PS em Portugal, PP em Espanha). Por isso, quando olha para a visita dos reis espanhóis a Portugal, o ministro Santos Silva sublinha que “o principal” foi “conseguir a máxima projecção pública da prioridade política que os dois países atribuem ao seu relacionamento.” Perante a crise internacional e a ameaça terrorista, os dois vizinhos estão hoje, de novo, convergentes na frente diplomática.

Para trás ficam os anos do Estado Novo, quando Portugal tentava diferenciar-se em relação a Espanha. Nessas décadas, lembra Daniel Marcos, “havia sempre tensão e rivalidade”. Até à democratização de ambos, “Portugal esteve numa situação de conforto e vantagem: estava na NATO e na EFTA e Espanha não estava. Espanha estava isolada e o mundo olhava para Franco como um regime que existia por causa da ajuda nazi.”

Para a visita dos reis, claro, já nada disto interessa. E só se ouviram palavras doces. As relações bilaterais são “sólidas e incomparáveis”, “especiais” e “intensas”, “mais que vizinhos, somos parentes”. Até António Guterres ganhou um novo título: “O primeiro peninsular disposto a assumir um cargo universal” tão difícil como o de chefiar as Nações Unidas (rei Felipe VI dixit).

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