Monólogo de derrota depois da esperança por todos os lados

Estive em Lisboa e lembrei de Você, de José Barahona, aprisiona uma tristeza rarefeita, límpida – aquilo que fica depois da tempestade –, que nos interpela sem bonança: um imigrante brasileiro derrotado em Lisboa olha para nós, portugueses.

Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria

Foi uma decisão que mudou um filme: fazer um actor, Paulo Azevedo, olhar de frente para a câmara, colocar o olhar da personagem Sérgio, imigrante brasileiro que acreditou no Eldorado lisboeta, a “vaguear, vaguear, à procura da memória”. E, assim, com esse monólogo de derrota de quem um dia foi rodeado de esperança por todos os lados aprisiona-se uma tristeza rarefeita, límpida – aquilo que fica depois da tempestade –, que nos interpela sem bonança.

Mas nem sempre foi assim Estive em Lisboa e lembrei de Você, conta o realizador José Barahona. Ele começou mesmo por querer replicar o dispositivo do brasileiro Luiz Ruffato (n. 1961), que no seu romance (des)construía uma ficção do real: “O livro é contado na primeira pessoa, logo na primeira página ele diz que alguém lhe apresentou o Sérgio em Lisboa, e o que se segue é uma suposta entrevista e uma suposta reportagem” com um imigrante de Cataguases, Minas Gerais, Brasil (onde Ruffato nasceu, aliás). O português Barahona reconheceu nisso o que vinha fazendo nos seus documentários (por exemplo, O Manuscrito Perdido, 2010), e daí até imaginar a mistura de ficção e real foi passo curto: haveria um actor a fazer de realizador, outro a interpretar Sérgio, o dispositivo mostraria também a sua (des)construção, o actor a transformar-se em Sérgio, o realizador a perguntar-lhe se ele estava pronto para começar... mas o actor olhando sempre para o realizador, nunca para a câmara. “Comecei a escrever o filme assim. Mas percebi que não queria um filme sobre o cinema, percebi que, estando a ser fiel ao texto do Ruffato, não era nada daquilo que queria, o que queria era uma narração directa para a câmara.” Foi essa a decisão que elevou um filme.

O filme encontrou a sua vida

“Estive à procura de referências”, conta, “encontrei filmes em que o actor parecia olhar para o realizador, não era isso. Um dia vi Saraband, do Bergman, e fiquei assustado. É uma câmara mais teatral, mas era aquilo: começa e acaba a dialogar com o espectador.” Paulo Azevedo, o actor escolhido, até lhe disse: “Não fazes por menos, logo a Liv Ullmann e o Bergman”. Era preciso actor que “aguentasse”. Paulo já tinha passado o casting. É originário de Minas Gerais, e tinha de o ser, “porque em Minas Gerais há um sotaque específico, não podia ser um actor do Rio de Janeiro a imitar esse sotaque”. E “não era actor global”, isto é, não é conhecido das telenovelas da Globo, era possível passear com ele nas ruas sem que a realidade se alterasse significativamente. No casting, Paulo chorou no monólogo, isso o realizador não queria para o filme, mas mostrou a paleta de emoções e modulações necessária. De tal forma que a sensação, perante Estive em Lisboa e lembrei de Você, é que o filme respira como Sérgio, a sua matéria são as pausas e os ritmos de um corpo, como se tivesse sido isso a determinar os flashbacks, a ditar a montagem. Mas foi pura construção, diz o realizador. “O Paulo não é nada daquilo. Mas vestiu o texto com a musicalidade que vem do [romance de] Ruffato. Que em si não é uma linguagem pura de Minas Gerais, é uma linguagem poética do que é o mineiro – como seria o nosso alentejano trabalhado.” Ou seja, Paulo “interiorizou o texto sem cábulas, saiu dele.”

Era decisivo fazer a escolha justa. Como diz o realizador português, o filme assenta numa “rede muito sólida” que é o monólogo dessa personagem, alguém que começa a querer deixar de fumar mas acaba com o cigarro na mão. E um peso cada vez maior no olhar, depois das decepções, da estigmatização, do logro lisboeta, deixando para trás a leveza de Cataguases. “Mas o resto foi improvisado, muito livre, muito híbrido, como se o filme encontrasse a sua própria vida. No início o argumento foi escrito com o livro do Ruffato aberto, depois fechei o livro...”. Depois, Barahona fez o percurso inverso de Ruffato. “Ele encontrou as pessoas em que se inspirou para construir a ficção. Eu, a partir dessa ficção, fui à procura de pessoas com aquelas histórias.”

Foto

Por exemplo, a prostituta Sheila, que Sérgio encontra em Lisboa: “Conheci várias prostitutas brasileiras em Lisboa, queria que uma delas contasse a sua história. Sabendo que o filme ia passar no Brasil, não quiseram dar a cara, as famílias não sabem o que elas fazem em Portugal, mas uma ficou até ao fim. Só que não funcionava – a Sheila é uma personagem cheia de nuances, e essa pessoa não tinha essa amplitude. Encontrei então a Renata Ferraz, actriz brasileira que vive em Lisboa. O monólogo da Sheila é um misto do que está no livro, da história da prostituta que encontrei e de coisas que a própria Renata trouxe, as alusões a São Paulo”.

Foto
O realizador José Barahona quis a sua personagem a olhar de frente para a câmara, a “vaguear, vaguear, à procura da memória”

Ou ainda, o pícaro médico de Cataguases, descendente de portugueses, que enche Sérgio de visões lisboetas, porque é um herói da pós-verdade esta personagem interpretada por Henrique Frade. “Que era um dos nossos produtores locais, que é realmente filho de portugueses, e que realmente confunde Champalimauds com Champollions. A cena em que dá supostos conselhos ao Sérgio na casa dele é exactamente o que ele fazia comigo na casa dele”.

Mesmo os locais falam como monólogos. A pensão onde Sérgio se aloja em Lisboa é dirigida por um proprietário que já tinha feito telenovela, portanto “gostava de aparecer”. O restaurante onde procura trabalho tinha de ser grande, porque “não havia dinheiro” para reservar o espaço para a rodagem, a câmara tinha de ser colocada num canto a apanhar um dia normal de trabalho. Apanhou o proprietário, a quem foi proposto que dissesse como é que se faz quando se contrata um imigrante para trabalhar.

“Na verdade, é como se fosse um filme de monólogos, Todas as personagens têm o seu momento, falam das suas vidas.” Sérgio também pode estar a falar por José Barahona, que há quatro anos vive no Brasil, que há dez anda “entre cá e lá” (e que se decidiu por um actor com quem é parecido). O desencontro também é o dele – e é o nosso, coisa que o filme nos mostra desde cedo, quando à ideia de um país que deu emigrantes ao mundo e que receberia de braços abertos os imigrantes se sobrepõe a ideia de um país colonizador que não gosta de se sentir colonizado. “Em 2005 havia muitos brasileiros que vinham para Portugal com uma ideia idealizada, e nós aqui já a ir por água abaixo, eles ainda em alta. Em 2013, quando começámos a filmar, isso já não existia, definitivamente. E eles estavam a voltar ao Brasil. Mas afinal, agora, com um golpe de Estado institucional lá, aqui é que está melhor outra vez. Neste momento Lisboa está na moda no Brasil para a classe média alta – gente com rendimentos que vem passar a reforma numa cidade sem violência. Quando fui embora daqui, estava zangado com o [governo de] Passos Coelho. Mas foi preciso sair de Lisboa para idealizar a minha cidade: o Rio é lindo mas é horrível, anda tudo aos tiros. Todos esses sentimentos se atravessam aqui.” Casado com uma brasileira, Barahona conta que sentiu o preconceito. Sérgio está em Lisboa. Cansado, derrotado, olha para nós.

Sugerir correcção
Comentar