O melhor da faceta politicamente combativa de Ken Loach

Uma fábula realisticamente absurda sobre o estado do “estado social” na Europa. “Kafkiano” pode servir a Eu, Daniel Blake, a Palma de Ouro de Cannes.

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Deve ter a ver com o poder misterioso da letra “k”, mas à medida que o filme de Ken Loach avança mais o nosso espírito vê o seu protagonista, Daniel Blake, como um parente afastado do famoso herói do Processo de Kafka, conhecido apenas por Josef K. Sugestão, certamente, e insondáveis são os caminhos da imaginação, pelo que quem nunca pecou por delírio que atire a primeira pedra. Mas, em rigor, um bocadinho mais do que só sugestão: também este homem com “k” no apelido é atirado para um pesadelo burocrático que não domina, não controla, e que o culpa de alguma coisa. Uma culpa um bocadinho mais concreta, e mais comezinha, do que a da personagem de Kafka: é um operário (da construção civil) e está doente do coração. Ser um trabalhador doente, essa é a sua culpa. O filme de Loach, ancorado nos “processos” específicos do regime laboral britânico, é uma fábula realisticamente absurda sobre o estado do “estado social” na Europa, e dos seus meandros, que o adjectivo “kafkiano”, na sua acepção mais corrente e naturalizada, também pode servir para qualificar.

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Como cineasta, Loach tem dias. Este é um dia sim, e para além do vigor e da mordacidade de Eu, Daniel Blake está aqui o melhor da faceta politicamente combativa do inglês. Ele que diz continuar a acreditar - no documentário sobre ele que se estreia em paralelo, Versus - que falar de “política” e falar de “vidas” são coisas inseparáveis. Ou melhor, que falar de “vidas” não deixa de implicar a “política”. Eu, Daniel Blake é um bom exemplo: a eficácia do filme reside na sua insistente permanência junto das personagens, na descrição das suas vidas quotidianas, na sua humanidade tão esfusiante quanto reprimida. A que não falta um toque britânico, o humor na face da adversidade, o stiff upper lip que não é exclusivo das upper classes. Vemo-lo, por exemplo, nas cenas em que Daniel Blake, inábil no uso de um computador, tem que preencher formularios online, em duelo com as minutas, com a linguagem, com o rato. Vemo-lo na reacção ao crescente desespero, com aquela pichagem na parede (Eu, Daniel Blake...) a que ele chama, a rir-se, street art. A propósito, “arte de rua” era uma boa maneira de caracterizar o cinema de Loach: é arte que “não entra”, e Daniel Blake está sempre de fora. De fora dos códigos, do sistema de pontos (“mas isto é um jogo?”) que o avalia e, contra a opinião do médico, o declara apto para trabalhar. Os serviços de apoio estatal são uma “parede” contra a qual Blake permanentemente bate, uma instância incorpórea e sem rosto que perdeu a capacidade de reconhecer a humanidade, os corpos e os rostos (e por exemplo nos telefonemas de Blake para os serviços quase nunca há contracampos do outro lado, fica-se só com as vozes, as vozes do “sistema”).

Não são os anos 20 de Kafka, e também não são os anos 30 de Capra. Eu, Daniel Blake tem também um bocadinho - ver a sequência final, o discurso da amiga do protagonista - de fábula capriana em reverso ou em negativo. A diferença é que Capra acreditava que as instituições, com uns empurrõezinhos aqui ou ali, estavam do lado do Bem. Loach, manifestamente, não acredita. Ou então não é questão de crença, é só a Europa do século XXI.

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