Porque pode (e até deve) ganhar o candidato que teve menos votos?

Tenho a certeza que nós, portugueses, no quadro de uma longínqua União Europeia mais integrada, também quereríamos fazer valer a nossa qualidade de Estado como forma de temperar a lei do mais forte.

1. Considero a vitória de Donald Trump uma má notícia para os EUA, para o mundo e, em particular, para a Europa. É claro que, para além da falta de experiência política, a inexistência de um pensamento estruturado e de uma visão internacional não são de bom augúrio. Alguns dos sinais iniciais preocupam: escolha de colaboradores próximos com ideias radicais, precedência dada a uma personalidade como Nigel Farrage, a absolutamente inusitada sugestão de que ele fosse designado embaixador britânico em Washington (humilhante para Londres). O horizonte está por isso pejado de nuvens cinzentas e pardas. Julgo, por isso, ser insuspeito de simpatia por Trump. Isto dito e assumido, tem-me chocado o simplismo e até o populismo bacoco com que tanta gente considera a vitória de Trump ilegítima, por causa de este ter tido menos votos – em redor de dois milhões – do que Hillary Clinton. Nuns casos, cura-se de manifesta ignorância; noutros, trata-se de um ostensivo argumento oportunista de mau perder.

2. Sem esquecer que houve modificações relevantes ao longo dos quase 230 anos de constituição, hoje afigura-se óbvio, pelo menos numa interpretação objectivista e actualista, que o sistema do colégio eleitoral é uma decorrência directa do carácter federal dos EUA. Os EUA não são um Estado unitário, consubstanciam uma federação. Não é por acaso que a câmara alta, o Senado, dá o mesmo número de senadores – dois – a todos os Estados Federados. O que vale para o Estado menos populoso, o Wyoming, que não chega aos 590 mil habitantes, e vale para o Estado mais populoso, a Califórnia, que ultrapassa os 39 milhões. Já na Câmara dos Representantes, que congrega o povo americano enquanto tal, rege naturalmente uma lógica proporcional e a mesma Califórnia tem 53 Representantes enquanto que o mesmo Wyoimng tem um único Representante.

3. As regras de composição do colégio eleitoral, já por si, indiciam uma influência da natureza federativa do Estado. O número de Grandes Eleitores que é consignado a cada Estado é igual à soma do “seu” número de senadores e de representantes. Esta regra garante uma sobre representação aos Estados menos populosos e tanto maior quanto mais pequenos (uma proporcionalidade “degressiva”). Assim, o número de Grandes Eleitores da Califórnia crescerá apenas dos proporcionais 53 para 55. Mas, em contrapartida, o Wyoiming verá quase “triplicar” o seu peso, pois transitará do proporcional representante único para três Grandes Eleitores. Esta mera regra de distribuição do número de Grandes Eleitores, já contribui, só por si, para atenuar a ideia de uma estrita proporcionalidade. E poderá distorcê-la significativamente se combinada com a adopção de um sistema eleitoral maioritário no interior das eleições a decorrer em cada Estado federado.

4. Do universo dos 50 Estados e do Distrito Federal, só dois Estados Federados adoptam um sistema proporcional, que permite repartir os “seus” Grandes Eleitores pelos candidatos em presença. São eles o Maine e o Nebraska. Todos os outros 48 Estados e o Distrito Federal adoptaram o sistema maioritário a uma volta, o que significa que ganha o candidato que chega à frente (the first past the post) e, ganhando, avoca a si a totalidade dos Grandes Eleitores imputáveis àquele Estado (the winner takes it all). Goste-se ou não deste sistema eleitoral, a verdade é que ele permite afirmar que o Estado, na eleição a ocorrer no Colégio Eleitoral, fala a uma só e única voz. Todos os seus votos – sejam 3, 23 ou 55 – exprimem a vontade apurada no Estado e será ele, enquanto tal, que exprime a opção por um ou outro candidato. É evidente que isto só é possível, na medida em que se aceite o carácter imperativo do mandato dos Grandes Eleitores, seja por norma, seja por costume ou até praxe.

5. Com tudo isto, onde quero chegar? Quero chegar precisamente à demonstração de que os EUA são uma democracia liberal, assente na separação dos poderes e no império do direito. E, decorrência dessa separação dos poderes num sentido vertical, são uma federação. Não são, portanto, uma moderníssima democracia iliberal, de tipo jacobino, onde a vontade da maioria se expressa acrítica ou caprichosamente. Na prática, a conjugação da evolução das regras da eleição indirecta com os sistemas eleitorais adoptados pelos Estados Federados (e, bem assim, de algumas praxes enraizadas) faz com que as eleições presidenciais dos EUA “internalizem” o carácter federal daquela entidade política. Nem de outro modo poderia ser: não faria qualquer sentido que o Presidente da União fosse eleito de um jeito que não reflectisse ou, ao menos, refractasse o substrato federal do Estado. Em termos simplistas e grosseiros, tirando aquelas duas excepções, cada Estado faz, dentro do seu território, umas “primárias” para escolher que candidato apoia. E, depois disso, vai ao colégio eleitoral expressar uma vontade una e indivisível, apurada democraticamente pelo povo do seu Estado. Eis o que explicita que, nas eleições presidenciais norte-americanas, não votam apenas os eleitores da União, votam também os Estados e até, como se viu, com uma progressiva sobre-representação dos menos populosos. É justamente essa natureza federal que explica que apurar uma “maioria nacional” à guisa do que se passa na generalidade dos Estados unitários seja algo de contra-natura. Assim se percebe que raramente, embora só muito raramente, possa ser legítima e justamente eleito um candidato que, no cômputo nacional nos votos, teve menos sufrágios do que o seu competidor. Tenho a certeza que nós, portugueses, no quadro de uma longínqua União Europeia mais integrada, também quereríamos fazer valer a nossa qualidade de Estado como forma de temperar a lei do mais forte. É isso que é uma democracia liberal, assente em direitos fundamentais, império da lei e separação dos poderes.  

<b>Sim e Não</b>

Sim. António Domingues. Fez bem, embora tardiamente, em assumir os seus princípios. E em mostrar ao Governo que não pode brincar com interesses públicos cardiais ao jogo do “esconde-esconde” e do “diz-desdiz”.

Não. Mourinho Félix. A demissão de Domingues e o desespero na Assembleia, depois do desmentido de Bruxelas e da duplicidade nas declarações de rendimentos, só agravam o imperativo da sua demissão.

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