Uma figura marcante

Um pequeno documentário intitulado “PM”, da autoria de Sabá Cabrera Infante e de Orlando Jiménez Leal e produzido em 1961 em pleno processo revolucionário cubano, originou uma violenta polémica política que terminou com um celebre discurso proferido por Fidel Castro na Biblioteca Nacional. O discurso intitulava-se “Palavras aos intelectuais” e continha uma mensagem clara bem resumida naquela que se tornaria a sua frase com maior repercussão: “dentro da revolução tudo, contra a revolução nada”. Pouco tempo antes, no âmbito desse mesmo encontro, uma das maiores figuras da literatura cubana, Virgilio Piñera, havia pedido a palavra para pronunciar apenas as seguintes palavras: “quero dizer-vos que tenho medo”. Tinha razões para isso. Muitas coisas já se tinham passado desde a noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro de 1959. Nessa noite o ditador Fulgêncio Batista abandonara Cuba abrindo as portas para a vinda de um grupo de jovens libertadores. Estes chegariam oito dias mais tarde e seriam aclamados por multidões apostadas no início de uma nova fase politica na historia do seu país. Fidel Castro, jovem advogado e orador brilhante, era o líder incontestado desse grupo que parecia trazer consigo uma promessa de liberdade e de justiça social. Nessa altura Fidel ainda não se declarara marxista-leninista e os seus apoiantes incluíam uma parte significativa da burguesia havanesa que nunca suportou o mestiço Fulgêncio Batista.

Pouco a pouco Fidel foi consolidando o seu poder usando de grande violência na repressão daqueles que designava como inimigos da revolução e rodeando-se de um núcleo de colaboradores cada vez mais reduzido, onde sobressaiam os nomes do seu irmão Raul e de Che Guevara. Este último deu um contributo importante para que a revolução avançasse no sentido de uma colectivização radical e de uma aproximação à União Soviética. Nas suas “Notas para o estudo da ideologia da revolução cubana” Guevara dizia a dada altura: “Devemos ser marxistas tão naturalmente como somos newtonianos na física e pasteurianos na biologia”. Para ele a revolução cubana inseria-se naturalmente no movimento comunista internacional mas transportava consigo uma dose de heterodoxia resultante das circunstâncias particulares em que se estava a realizar.

Fidel Castro foi, sem dúvida, um homem dotado de excepcionais qualidade políticas que lhe permitiram ascender à categoria de uma figura mítica para grande parte da esquerda latino-americana e lhe garantiram a admiração, durante muito tempo, de largos sectores que iam desde alguns dos mais importantes filósofos parisienses até quase todos os dirigentes dos países do Terceiro Mundo. Conseguiu tal façanha articulando com mestria uma retórica anti-imperialista dirigida contra os Estados Unidos, um discurso nacionalista inspirado no pensamento e na ação de Jose Martí (herói da independência cubana) e a proclamação de um marxismo-leninismo de tons tropicais.

As autoridades norte-americanas, muito impressionadas com a presença de um aliado do inimigo soviético a tão escassas milhas de distância, reagiram vigorosamente adoptando um embargo comercial que ajudou a projetar a imagem que mais interessava ao líder cubano – a de um herói obstinado em defender o seu pequeno país ameaçado pelo grande colosso vizinho.  A realidade era um pouco mais complexa – lembremo-nos da extrema gravidade da chamada “crise dos mísseis” que poderia ter conduzido a um confronto apocalítico entre as duas super-potências da Guerra Fria. Fidel agiu nessa ocasião com grande inconsciência levando atrás de si sectores fanatizados da população cubana que reagiram mal à decisão realista de Nikita Khrushchov de mandar retirar os mísseis. Nas ruas de Havana os manifestantes gritavam uma curiosa palavra de ordem – “ Nikita, mariquita, lo que se da no se quita”.

Fidel Castro ficará para a historia como uma figura marcante do século XX. Na hora da sua morte sucedem-se, alternadamente, as hagiografias e algumas manifestações de ódio. Daqui a uns anos deverá ser percebido como aquilo que ele realmente foi. Um homem do seu século, animado de uma vontade revolucionária, decerto inicialmente inspirada num desejo de emancipação política e social, que foi rapidamente aprisionada por uma doutrina liberticida e profundamente hostil aos direitos humanos - o marxismo-leninismo. 

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