Quando Trump e Putin entram na campanha da França

François Hollande foi um erro de casting que não deixará saudades.

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1. Enquanto a direita chega ao fim da batalha para escolher o seu candidato ao Eliseu, à esquerda os jogos ainda não estão feitos. Os candidatos reais ou potenciais começam a marcar terreno, do actual primeiro-ministro, Manuel Valls, ao seu ex-ministro da Economia Emmanuel Macron, passando por Jean-Luc Mélenchon, da esquerda radical. Falta a clarificação de François Hollande que o Presidente teima em adiar até ao último minuto. Mas à esquerda, tal como à direita, não há vencedores à partida, num cenário político que, como se viu com François Fillon, passou a ter um grau de imprevisibilidade muito elevado. Haverá, também à esquerda, um candidato “escondido” capaz de operar uma reviravolta inesperada? É pouco provável, a não ser o próprio Hollande. As primárias dos socialistas são já em Janeiro. O quadro ficará finalmente completo para as presidenciais de 23 de Abril (primeira volta).

François Hollande foi um erro de casting que não deixará saudades. A sua popularidade é mínima. Se quiser candidatar-se, terá de sujeitar-se às primárias socialistas. Só isto representa uma humilhação, única na V República, em que os presidentes eram livres de se candidatar a um segundo mandato. O mais afectado pelo seu silêncio é Manuel Valls, amarrado (ainda) pela sua lealdade ao Presidente. Hollande foi eleito porque os franceses queriam “tudo menos Sarkozy”. Nunca conseguiu afirmar-se com brilho próprio e preencher o molde que De Gaulle formatou para quem lhe sucedesse no Eliseu.

2. Entretanto, a Europa e o mundo estão em mudança acelerada, com consequências imprevisíveis, que se reflectem necessariamente na paisagem política francesa. À direita regressou a França burguesa e conservadora, baralhando o jogo das primárias que termina hoje com a vitória mais do que provável de François Fillon. Dizem alguns analistas que ele pode ser o pior cenário para Marine Le Pen, cuja candidatura continua a liderar as sondagens. À esquerda Emmanuel Macron já está implantado no terreno. Abandonou o Governo em Agosto, criou o seu próprio movimento (En Marche), adoptou uma nova linguagem para tentar colocar a sua candidatura fora do sistema partidário, que considera “bloqueado” e incapaz de responder às exigências do século XXI. “A França é governada com ideias do anos 80”, disse ao Monde. Os “elefantes” do PS detestam-no. Gostariam que se submetesse às primárias, a única forma de poder controlá-lo. Ele já disse que não. Rejeita a dicotomia esquerda-direita no país que inventou o conceito. Apresenta-se como um outsider. Frequentou as mesmas escolas de elite por onde passa quase toda a classe dirigente francesa. Mas fez um intervalo para trabalhar num banco de investimento (dos Rothschild), orgulhando-se de ter acumulado um pé-de-meia que lhe garante a independência da política. Era o mais popular dos ministros do Governo de Valls.

Não conseguiu reformar grande coisa, mas pode sempre alegar que não o deixaram. Já tem uma estrutura com quase 100 mil inscritos e organizações em praticamente todas as regiões da França. Com a mais que provável saída de cena de Alain Juppé, abre-se-lhe algum espaço ao centro. Acaba de publicar um livro, Revolução, que, mais do que um programa, serve para o situar no devir histórico da França do pós-guerra. É difícil catalogá-lo com os critérios habituais. Liberal? Sim, ma non troppo. Social-democrata? Também. Populista? O necessário. Falta-lhe gravitas, mas tem 38 anos e pode olhar para o futuro, se não for esta a sua vez. No livro regressa a De Gaulle, o Presidente que simbolizou a “grandeza” da França, mas que teve, ao mesmo tempo, a coragem de acabar com o domínio colonial francês, para poder salvar a sua parte europeia. Reclama a linhagem de Michel Rocard, o líder da “segunda esquerda” que chegou a ser primeiro-ministro de Mitterrand (embora se considerasse o seu oposto), defendendo o “rigor” das contas públicas e o parler vrai. Desde que saiu do Governo, Macron mantém com Manuel Valls uma “guerra fria”, escreve a AFP, que aquecerá quando o actual primeiro-ministro apresentar a sua candidatura. Percebe-se porquê. Valls ocupou durante muito tempo o posto de iconoclasta entre os socialistas, situando-se à direita, mais liberal na economia e sem medo de encarar de frente os problemas reais da imigração e da sua perigosa mistura com os deserdados da globalização (que alimentam a Frente Nacional), sem medo de dizer algumas verdades que incomodam normalmente a esquerda. Vê agora a sua “marca de origem” roubada por Macron. Os seus apoiantes vão deixando cair que será candidato, quer Hollande queira, quer não queira. As críticas que o actual Presidente lhe faz, no seu polémico livro de confissões a dois jornalistas do Monde, aumentam a sua margem de manobra. Já disse que não tenciona ir colar cartazes para Hollande. Diz normalmente o que os seus adversários socialistas não dizem: que Marine Le Pen pode ganhar o Eliseu e que a Europa pode implodir. Ainda não definiu qual vai ser a direcção da sua candidatura: unir a esquerda ou continuar a olhar para o centro. Trump e Macron baralharam-lhe as voltas. Arnaud de Montebourg, que representa a ala esquerda do PS, já disse que irá às primárias. Jean-Luc Mélenchon, o candidato da esquerda radical, consegue um score razoável (13 a 15 por cento), beneficiando do impasse entre os socialistas. Como noutros países europeus e nos EUA, o seu discurso prova que os extremos, se não se tocam, pelo menos aproximam-se. Simpatiza com Putin, não gosta de acordos comerciais, como Trump, e já chegou a reconhecer que os imigrantes tiram trabalho aos franceses.

Quer acabar com a V República, com a ideia peregrina de convocar uma assembleia constituinte cujos membros serão tirados à sorte entre todos os franceses. A Europa, a não ser para os que não gostam dela, como Le Pen ou Mélenchon, ainda não entrou a fundo na campanha. Ou entrou por vias travessas. O sinal mais preocupante talvez seja a presença de Trump e de Putin na definição política dos candidatos, como nunca se tinha visto até agora. O Presidente russo já “participou” nas eleições americanas. Agora, “participa” nas francesas, como um bom amigo de François Fillon e um bom companheiro de Le Pen. A direita francesa, formatada por De Gaulle, manteve sempre viva uma forte tendência antiamericana. Como noutras ocasiões, são os socialistas que percebem melhor até que ponto a relação transatlântica é importante para a Europa. Mitterrand foi a prova disso (da crise dos mísseis SS20 à primeira guerra do Golfo), embora tenha sido Sarkozy a decidir o regresso da França à estrutura militar da Aliança, de onde o general a retirara. François Hollande não foi excepção. Nem Valls nem Macron falam de qualquer aproximação a Moscovo, ao contrário de Fillon. Juppé sempre foi um europeísta, enquanto o seu rival se inclinava para uma posição mais reservada.

3. As eleições francesas, daqui a cinco meses, terão um efeito profundo no futuro da Europa. As hipóteses de o candidato de centro-esquerda, seja ele quem for, chegar à segunda volta continuam a ser pequenas. Os socialistas têm hoje plena consciência de que só um milagre ou um “cisne negro” que não veremos chegar podem abrir-lhes de novo as portas do Eliseu. Não é ainda possível avaliar o efeito Fillon na repartição dos votos da direita com Marine. Mas este é também um factor fundamental para fazer as contas das presidenciais. Marine é dada como certa. O problema é que cinco meses passaram a ser, nos dias que correm, uma eternidade. Tudo pode sempre acontecer.

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