O revolucionário genuíno

Vivemos num mundo em que o que acontece só acontece se passa nas emissões televisivas ou no youtube ou registado numa selfie

A força indomável das multidões unidas vai dando lugar a uma solidão que as invenções tecnológicas sublimam. As trombetas anunciam sempre o mesmo destino, seja quem for que as sopre. Há uma espécie de medo por todo o lado que se apega à pele e não sai. Ontem, 25 de Novembro, morreu um homem que abanou o tempo nas suas entranhas e o segurou por breves instantes. Um homem dos pés à cabeça, daqueles que, como montanhas saídas dos vulcões sociais, provam que são os homens que fabricam a sua História.

Trocou a advocacia e a Universidade por um sonho. Se Luther King teve um sonho ele viveu a sonhar despedaçando pesadelos. Sem olhar para o que então se ensinava acerca das revoluções ele e mais uma centena e picos de corajosos lutadores partiram ao assalto de Moncada para derrotar o ditador protegido pelos yankees de seu nome Fulgencio Batista. O assalto fracassou e a maioria morreu frente aos homens do protegido do grande vizinho. Fidel foi preso, julgado e condenado.

Animado de indomável vontade, contrariando a ideia assumida que a História passava nas grandes cidades da Florida ou mais ao norte, lançou-se de novo à empolgante aventura humana de acreditar que o sonho pode comandar a vida. Esse era um tempo em que as revoluções deviam acontecer segundo as ideias dos revolucionários diplomados em Moscovo ou em Pequim.

Não havia nos manuais das revoluções Sierra Maestra ou Gramna, nem o próprio partido comunista de Cuba o admitia. Só Fidel, Che, Camilo e tantos no meio de tão poucos. El Comandante expulsou Fulgencio, o sátrapa de Washington, e trouxe a dignidade a Cuba. A juventude do mundo pôs os olhos em Cuba. Um caminho absolutamente singular, nunca antes teorizado, levou um conjunto de homens com a sua coragem a interpretar as aspirações de um povo muito personalizado, apesar dos casinos yankees.

Mesmo debaixo das barbas do Grande Império, Fidel abria uma nova escada por onde os povos poderiam trepar e arranhar os céus da liberdade. O povo cubano tem uma forte identidade e orgulho nacional que Marti tantas vezes elevou nos seus escritos patrióticos. Fidel foi sobretudo cubano, mesmo quando se protegeu com a aliança com a URSS. Nunca abandonou aquilo que considerou ser o melhor caminho para Cuba.

Ajuda a explicar a razão de o regime se ter mantido quando se esboroou na Europa. Na verdade tem de se reconhecer convicções e princípios a Fidel. O trajeto de Cuba é tão singular que o 1º Congresso do Partido Comunista de Cuba se realizou nos finais de 1975, dezasseis anos depois da vitória sobre a ditadura de Batista.

Fidel procurou em todas as ocasiões um caminho muito própria para a revolução cubana, afastando-se em muitos aspetos do modelo soviético ou chinês. Precisava da URSS e aproximou-se daquele país. Na era de Gorbatchov virou-se para os chineses após anos de violentos ataques. Cuba tinha relações diplomáticas com Portugal, mesmo antes do 25 de Abril, havendo um encarregado de negócios em La Havana e uma Secção Comercial em Lisboa, o que não acontecia com os restantes países socialistas.

Durante a revolução de abril voltou a marcar o terreno com a sua política própria aproximando-se de Otelo e de outros grupos, sem descurar as relações com o PCP, mas não se ficando por aí… Fidel procurou para Cuba um caminho muito especial, mesmo que passasse por estar com os indonésios no caso de Timor-Leste.

Num tempo em que os dirigentes políticos no poder saem dos governos para os círculos financeiros e a riqueza do mundo se concentra nas mãos de uma ínfima minoria e a política se circunscreve aos desígnios dos mercados, morreu um homem que escreveu a História de outro modo. Um gigante. Uma figura messiânica. Um homem que mostrou que SI, SE PUEDE.

Muita coisa precisa de ser mudada em Cuba. E os cubanos sabem-no. O percurso de Fidel, com tanta glória e pontos negros, vai começar a ser julgado agora que morreu e a História implacável, como sempre, dará luz à luz e fará luz sobre o escuro de muitas coisas. 

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