Valda e Gus deram o corpo pelo século XX

Eszter Salamon convocou duas figuras colossais da dança pós-moderna – ela com 82 anos, ele com 76 – para continuar com elas o seu projecto de reescrita da história contemporânea. Monument 0.1: Valda & Gus chega este domingo a Serralves.

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URSULA KAUFMANN
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Valda Setterfield, 82 anos, atravessou uma história do século XX que começa, tanto quanto ela se lembra, na turma de canto coral a que certas infâncias inglesas tiveram direito e que agora lhe vem à cabeça exactamente por esta ordem: “Deus. Guerra. Escola”. Gus Solomon Jr., 76, atravessou outra história do século XX que começa, não há maneira de ele se esquecer disso, naquela América branca em que o papel de um americano negro era, na melhor das hipóteses, o de entreter o grande público, uma América que ele cresceu a achar inultrapassável até se tornar “o primeiro bailarino ‘de outra raça’ da Merce Cunningham Dance Company”. Foi lá, de resto, que os séculos XX de Valda e de Gus se cruzaram para construir uma das muitas maravilhosas histórias de que esses anos foram feitos, a irrepetível aventura da dança pós-moderna.

Entretanto, o século XX acabou. Merce Cunningham morreu (Valda viu-o três dias antes: ele ficou calado, ela também), John Cage já tinha morrido antes (Valda estava em Osaka a ver um espectáculo de marionetas e jura que ouviu a voz dele a dizer um haiku), mas, mesmo depois de terem dado o corpo por eles, Valda e Gus continuam vivos – tão vivos como os encontramos agora em Monument 0.1: Valda & Gus, segunda parte de um projecto de reescrita da história contemporânea a partir da história da dança que Eszter Salamon, artista associada do Centre National de la Danse, traz a Serralves, onde em 2009 mostrou o autobiográfico And Then…, este domingo. Depois de ter inventariado, em Monument 0.0: Haunted by Wars (1913-2013), paradigmas de movimento que o cânone moderno ocidental fez por banir e apagar, impondo-se a todo um reportório agora perdido de danças tribais, folclóricas, populares da mesma maneira que a Europa se impôs, via colonização, a uma boa parte do resto do mundo, a coreógrafa húngara quis continuar a desmontar o cânone, desta vez visitando os bastidores daquele que é, para todos os efeitos, um património coreográfico universal.

Além das suas próprias histórias pessoais – levantadas numa série de entrevistas biográficas conduzidas por Eszter Salamon e pelo historiador e crítico de arte Christophe Wavelet –, Valda e Gus, dois dos mais inesquecíveis bailarinos da companhia de Merce Cunningham e da dança pós-moderna em geral, transportam para o palco, às vezes até muito figurativamente, toda uma história colectiva de dor e de superação. Nada (nenhum bombardeamento, nenhuma guerra) tinha preparado Valda – dir-nos-á a meio da peça, contando como a sensação de dominar completamente os músculos a fazia sentir-se maior do que a vida – para a violência do parto, do acidente de viação que a deixou temporariamente amnésica, ou do infernal cheiro a morte do 11 de Setembro. Tal como nada tinha preparado Gus para tudo o que a sida veio deixar para sempre a meio, como as vidas dos amigos próximos que naqueles anos apareceram com sintomas impossíveis de identificar: “Por sorte, não era muito activo na cena gay, o que na verdade me salvou a vida.”

Por sorte, o século XX não os matou. Fez o que fez a tantos como eles: tornou-os sobreviventes.

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