As novas tecnologias ao serviço da ópera setecentista

A versão cénica de Carlos Pimenta da ópera L’Isola Disabitata, de David Perez, que agora se estreia no Centro Cultural de Belém, reinventa o imaginário barroco através das tecnologias digitais.

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NUNO FERREIRA SANTOS

Do fundo do palco do Centro Cultural de Belém emergem nuvens carregadas de uma tempestade marítima e a sombra de um navio pirata, mas também ondas multiformes que se agitam e por vezes se decompõem em elementos geométricos esvoaçantes. Ensaiam-se as projecções de vídeo e as primeiras incursões vocais dos cantores que formam o elenco de L’Isola Disabitata, “azione per musica” com texto de Pietro Metastasio, um dos mais célebres libretistas do século XVIII, e música do compositor napolitano David Perez, que viveu em Lisboa de 1752 até à sua morte em 1778, ao serviço da corte portuguesa. Depois de uma versão de concerto apresentada em 2015 no Palácio de Queluz, local da estreia da obra em 1767, o Divino Sospiro, sob a direcção de Massimo Mazzeo, propõe agora uma versão encenada concebida por Carlos Pimenta, com vídeo de João Pedro Fonseca, desenho de luz de Rui Monteiro e figurinos de José António Tenente, que será apresentada esta sexta-feira e também no sábado, às 20h. As sopranos Joana Seara (Costanza), Francesca Aspromonte (Silvia) e Eduarda Melo (Enrico) e o tenor Bruno Almeida (Gernando) dão vida a uma história feita de equívocos na qual estará bem presente a dicotomia entre natureza e civilização.

O jovem Gernando viaja por mar com a sua esposa Costanza e a irmã dela, Silvia, ainda  criança, rumo às Índias Ocidentais, quando uma perigosa tempestade o obriga a aportar numa ilha desabitada. Enquanto as duas jovens descansam numa gruta, Gernando é sequestrado por piratas. Ao acordar, Costanza pensa que foi abandonada pelo marido. Passa os 13 anos seguintes na ilha, educando a pequena Silvia no ódio aos homens. Quando Gernando consegue libertar-se, regressa com o seu amigo Enrico, sendo este reencontro o centro da acção, que inspirou numerosos compositores, desde Giuseppe Bonno a Haydn, passando por Jommelli, Sarti e Traetta , entre outros.

Para a violinista Iskrena Yordanova, responsável pela edição crítica da partitura – que será publicada pelo Instituto Italiano de História da Música (Roma), com o apoio do CEMSP-Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal, criado pelo Divino Sospiro e sediado no Palácio de Queluz –, a escolha desta obra deve-se à relação de David Perez com os donos do palácio, ou seja, com o Infante D. Pedro e a futura D. Maria I, ambos alunos do compositor.  “Foi uma figura importante a nível europeu, não só em Portugal. Conhecemos algum do seu repertório sacro, mas pouco das suas óperas.”

Além da beleza da música, Iskrena Iordanova sentiu-se atraída pelo texto de Metastasio. “Parece-me um tema muito ligado aos portugueses, que são gente de mar. Note-se que também a versão de L’Isola Disabitata de Jommelli foi feita com êxito nos teatros da corte de Lisboa.” “O estilo musical de Perez", diz, "é muito brilhante e denuncia as suas origens napolitanas, mas desenvolveu-se muito em Lisboa". “O repertório da década de 1740, escrito em Palermo, soa bastante mais antiquado, a música que fez em Portugal enquadra-se já no estilo clássico.” Entre as particularidades desta partitura salienta efeitos de colorido como o timbre resultante da união dos dois fagotes que tocam em uníssono com as violetas e o dueto final. “Deveria ser um trecho feliz, pois trata-se do reencontro dos amantes, mas está na tonalidade fá menor, mais sombria: acho que há aqui algo do carácter português!”

Efeitos especiais

Carlos Pimenta, que já tinha colaborado com o Divino Sospiro no Antigono, de Antonio Mazzoni, uma das poucas obras apresentadas na Ópera do Tejo, destruída pelo Terramoto de 1755, recorre mais uma vez às tecnologias digitais. “Nunca houve um período na história do teatro em que houvesse tanta tecnologia de palco como no barroco, havia máquinas para todo o tipo de efeitos especiais”, nota ao PÚBLICO. “Hoje recuperamos o mesmo conceito mas utilizando o digital. Imagine-se a complexidade da maquinaria necessária na época para recriar a tempestade e fazer surgir logo a seguir um sol radioso na ilha. Com vídeo conseguimos isso num abrir e fechar de olhos!” Mesmo assim, Carlos Pimenta confessa que tem o sonho de um dia ainda poder montar uma ópera barroca com os recursos da  época, tanto ao nível da maquinaria teatral como da iluminação (à luz de velas), dos figurinos e das cabeleiras. “As reconstituições históricas nem sempre são bem vistas e ficam muito caras, mas se não se fazem há uma série de métiers que se perdem.”

Apesar de as possibilidades serem infinitas, não recorreu “a  malabarismos tecnológicos”, procurando antes uma estrutura simples, essencial à acção. “No Antigono optámos pelo desenho digital em tempo real como algo que se vai construindo numa tela. A dimensão do palco era bidimensional. Em L’Isola Disabitata o vídeo é autónomo na tela de fundo e temos um espaço onde a acção acontece dramaticamente, estamos mais próprios de uma encenação propriamente dita.” Algumas “piscadelas de olho ao imaginário setecentista, entre o desenho e a pintura”, são depois estilizadas. O vídeo irá acompanhar a fluidez da acção pois será operado em directo: “Não é uma estrutura rígida na qual os cantores tenham de encaixar à força.”

O que mais atrai Carlos Pimenta no texto de Metastasio é a ideia da “infidelidade fiel”, a teia de equívocos que leva as personagens a pensarem numa infidelidade que não ocorreu e, sobretudo, a relação entre natureza e civilização. “Eles vêm do mundo civilizado, mas Silvia acaba por crescer naquela ilha, sem contacto com o conceito de cultura. Para ela os homens são seres maus e agressivos. Enrico é o primeiro homem que vê e descobre que afinal não é bem assim.”

O encenador quis também acentuar a ideia de que Gernando viveu todos aqueles anos noutro contexto. “No final surge vestido de fato escuro e camisa branca, pois vem da cidade, e não da natureza. Pelo contrário, Costanza ficou 13 anos sozinha na ilha com Silvia, por isso surge com o mesmo vestido. O salto no tempo é muito maior para Gernando, pois pôde entretanto contactar com muitas outras realidades.”

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