Mergulhar na pintura de Canoilas

O gosto de Canoilas por uma ideia de pintura imersiva que tem de ser percorrida e descoberta pelo espectador.

O desafio proposto é questionar a convenção do formato e materialização da pintura
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O desafio proposto é questionar a convenção do formato e materialização da pintura
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O desafio proposto é questionar a convenção do formato e materialização da pintura

Abriu hoje ao público a segunda edição do MNAC/SONAE Art Cycles. Um programa bienal que dá a um artista português a oportunidade de criar durante um ano um projecto novo para as galerias do Museu do Chiado. Desta vez a escolha recaiu sobre Hugo Canoilas (n. Lisboa, 1977) que através de um conjunto de quatro vídeos, uma pintura e uma banda sonora nos faz imergir num universo intenso em que se cruzam questões da pintura, do cinema, da autoria e da maneira como os artistas podem ser socialmente interventivos sem se transformarem em instrumentos de propaganda.

Há muitas referências neste projecto de Canoilas onde se cruzam pintura, literatura, cinema, filosofia, mas o elemento central — que dá título à exposição — é o romance de Malcolm Lowry Under the Vulcano (1947). Um livro cujos 12 capítulos contam as derradeiras últimas 12h da vida de um ex-cônsul britânico no México. Horas essas de intensa embriaguez em que se é conduzido através de um tempo — muito longo: o cônsul diz serem as horas mais longas da sua vida — que culmina no seu assassinato. Levados pelo absinto consumido pela personagem, embarcamos numa viagem de lucidez, alucinação e fabricação de imagens que servem ao escritor para questionar a vida, o amor e as relações de poder. É o próprio Lowry que numa entrevista (citada no Guardian) dizia que o seu livro, escrito durante oito anos, era uma profecia, um aviso político, um criptograma, um escrito na parede. Uma viagem intensa em que a consciência da proximidade da morte e a experiência da finitude são elementos que, sem ser anunciados, se impõem como o fundo sobre o qual se desenrola toda a acção.

Esta brevíssima apresentação não evidencia os conteúdos da exposição de Canoilas, mas serve para mostrar o modo como há uma mesma atmosfera e um mesmo mecanismo metafórico e alegórico. Canoilas não interroga o sentido da vida, mas o mundo da arte, as suas convenções, cânones e sistemas de poder. Esta camada crítica não é um enunciado ou uma premissa, é uma consequência alojada na própria obra. Um exemplo: Canoilas convoca uma pluralidade de mãos, cabeças e vozes, com as quais desfaz a ideia de autoria — muito importante num tempo em que a atenção se deslocou das obras para as mitologias criadas à volta da persona artística —, não porque se trate de uma obra colectiva — a autoria é inquestionável — mas para nos confrontar com uma obra múltipla composta de muitas camadas e colaborações.

À multiplicidade conceptual e criativa, junta-se a heterogeneidade dos elementos pictóricos e formais com que Canoilas constrói a peça, que é uma pintura, mas que se apresenta liberta da sua condição objectual e colocada num lugar muito amplo do qual fazem parte imagens em movimento, textos, sons, vozes, corpos. Entrar nesta exposição é entrar numa enorme pintura e cada elemento dela — isolado e destacado nas diferentes salas do museu — é como se fosse um detalhe: umas vezes são vozes que dizem um texto num monitor negro, outras são actores que num filme contam uma história, outras são sons ou pormenores de uma paisagem, retratos de rostos. É como se o artista quisesse explorar o modo como se constrói uma pintura e nos desse a ver que a pintura não é definida pelo domínio de um meio — tinta sobre uma superfície —, nem por uma estilo — abstracção, figuração, realismo, expressionismo, etc. —, mas por uma certa organização da visualidade e tempo do mundo.

O gosto de Canoilas por esta ideia de pintura imersiva — não se trata de uma obra de arte total — que tem de ser percorrida e descoberta pelo espectador, já era conhecido desde a sua exposição nas galerias do Palácio Nacional da Ajuda onde, em 2005, construiu o espaço como se de uma enorme pintura se tratasse envolvendo pessoas, arquitectura, movimento, performance. Desta vez a novidade não é só a utilização da imagem em movimento, mas a maneira como o pintor — e Canoilas é um pintor — usa a técnica cinematográfica da montagem para construir a obra. O desafio proposto — primeiro a si mesmo e, depois, ao espectador — é questionar a convenção do formato e materialização da pintura. Esta é uma pintura que se prolonga do interior do filme — o cenário da quase totalidade do filme é uma pintura monumental feita pelo artista com 3,75m de altura por 100m de comprimento — até ao seu exterior e sobre chão, tecto, paredes, envolvendo e tocando o corpo do espectador. Pode dizer-se que o uso que Canoilas faz do filme não significa o abandono do campo da pintura, nem tão pouco a exploração de uma ideia de pintura-filmada. Trata-se da utilização da ferramenta cinematográfica como elemento síntese que coloca a pintura em contacto com outro tipo de formulações e tecnologias (modos de fazer), tomando-a como experiência de multiplicidade e heterogeneidade.

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