O povo e as elites: uma falsa dicotomia

O resultado das eleições estado-unidenses continua a suscitar um amplo trabalho interpretativo que acabou por se constituir num dos mais interessantes debates políticos dos últimos anos. Há, contudo, um tópico dominante que parece merecer especial atenção: o confronto entre o povo e as elites, com a subsequente crise dos mecanismos de representação política tradicionais. Na maior parte dos casos, os textos publicados neste campo incorrem num erro de princípio que afecta negativamente toda a reflexão teórica ulterior. Esse erro consiste na adopção de uma concepção monista, ou homogénea, dos termos "povo" e "elites". Em nenhuma sociedade democrática e pluralista se pode aceitar a ideia de uma representação popular unívoca, nem tampouco a de uma elite monolítica. Nesse erro caem simultaneamente os novos populistas inspirados no pensamento de Ernesto Laclau e os velhíssimos conservadores que continuam a acreditar numa separação radical entre uma pretensa aristocracia e uma imaginada plebe.

A primeira crítica que se pode e deve endereçar a tal tipo de visão é a de que nas sociedades contemporâneas, cultural e civilizacionalmente complexas e tecnologicamente muito avançadas, é muito difícil estabelecer uma fronteira nítida entre o povo e as elites. Não por acaso, alguns pensadores neo-marxistas têm procurado enquadrar num conceito vago de "novo proletariado" alguns sectores profissionais que até há pouco tempo eram identificados com algumas das elites tradicionais. Essa preocupação, que não é totalmente destituída de sentido, é bem reveladora da impossibilidade de traçar uma fronteira clara entre estas categorias, a de elite e a de povo, seja no plano do simbólico, seja no próprio plano da realidade social.

O segundo grande problema reside na extrema dificuldade em proceder a uma caracterização minimamente operativa dos conceitos em causa.

Claudio Magris desenvolveu há poucos dias uma curiosa e muito elucidativa reflexão que merece ser citada. Numa entrevista ao jornal El Mundo, afirma ele que "se Marx aludia ao lumpenproletariado, hoje podemos falar dos lumpenleitores e dos lumpenburgueses, que não têm consciência de si mesmos, que não têm opinião sobre o sistema e que podem ser usados por qualquer causa reaccionária".

O que o grande escritor e pensador italiano nos vem lembrar é a impossibilidade de uma definição inequívoca e não polémica da categoria mental que identificamos com o povo. Magris vai ainda mais longe, aludindo, por analogia com o conceito de lumpenproletariat, a novos lumpens, com elevada expressão nas sociedades democráticas contemporâneas, e que explicam, com maior pertinência do que qualquer tentativa de compreensão puramente económica, muitas das tendências eleitorais recentemente manifestadas.

Estes novos lumpens, que tanto podem alimentar um discurso reaccionário como uma proposta política de natureza revolucionária, anulam qualquer veleidade emancipatória da retórica populista, e chamam a atenção para desigualdades de um novo tipo que as nossas democracias liberais têm vindo a acalentar. Curiosamente, essas desigualdades em muitos casos promovem-se em nome de um alargamento virtual dos próprios princípios de participação e fruição democráticos. Atentemos num exemplo simples: grande parte das nossas melhores livrarias em Lisboa e no Porto estão transformadas em pequenas-grandes superfícies de exibição da vulgaridade e da boçalidade culturais, estimulando assim a expansão do tal lumpenleitorado. Claro que se poderá contrapor que, com os novos meios de venda ao dispor na internet, nunca terá sido tão fácil aceder às obras mais relevantes de um qualquer cânone literário ou filosófico. Só que aí se coloca a grande diferença que separa o espaço público da livraria da dimensão impessoal e atomizada da oferta digital. Coisas que parecem pouco relevantes acabam por ter um potencial explicativo extraordinário.

O lumpenleitorado em que se integram muitas das elites tradicionais tende facilmente a transformar-se numa espécie de base social de sustentação de propostas políticas simplistas, caracterizadas por um elevado teor emotivo e por uma baixa carga racional.

Já a lumpenburguesia, conceito que decorre mais da dimensão cultural do que do plano económico, concorre para o favorecimento de uma linguagem política assente em sentimentos tão perigosos como o ressentimento ou mesmo o ódio indistintamente dirigido. Não é que noutras épocas tudo isto não existisse, a questão é o peso desproporcionado que tais comportamentos adquiriram nos últimos anos. Não estamos a falar do pessimismo antropológico requintado e até esteticamente proclamado de alguns dos principais pensadores do mundo ocidental, nem tampouco da raiva e da cólera tão compreensíveis que alguns segmentos populares manifestaram em momentos decisivos da história da humanidade. Pelo contrário, hoje tudo se passa num ambiente aparentemente mais evoluído, mas realmemte bastante mais perigoso.

Se nos detivermos um pouco na apreciação do conceito de elite, chegaremos a conclusões parecidas. A simples crença na existência de uma elite unívoca, que englobasse simultaneamente as dimensões cultural, política, social e económica, constitui um tão grave erro como aquele em que se incorre quando se apela a um suposto povo único. Para além da natural dificuldade na delimitação dos vários tipos de elites, temos de contar ainda com os antagonismos e contradições que estruturam tal conceito. É por isso mesmo que é ridículo tentar associar a vitória de um multimilionário nova-iorquino a uma explosão democrática das massas populares.

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