A ascensão do populismo e a ilusão progressista das minorias

Uma outra revolução conservadora poderá estar ainda em marcha. Se as actuais tendências sociais e políticas se mantiverem, o século XXI não será progressista.

1. A vitória de Donald Trump foi um choque para todos os que se vêem, a si próprios, como progressistas. Antes das eleições presidenciais de 8 de Novembro último, era a direita conservadora norte-americana que parecia estar destinada a uma longa travessia do deserto para voltar a eleger um novo presidente. Na realidade, aconteceu precisamente o inverso. Foi a esquerda progressista — liberal na linguagem política dos EUA —, que foi estrondosamente derrotada. O poder ficou largamente concentrado nas mãos dos republicanos, não só na presidência da república como nas duas câmaras do Congresso, o parlamento federal dos EUA, e no próprio sistema judicial. Foram também os democratas que ficaram sem liderança e entregues a um processo de lutas internas pela redefinição do futuro rumo político do partido. Quanto aos republicanos, saíram do seu conservadorismo tradicional e transformaram-se no partido de Trump, com todas as consequências que daí resultam e que só os próximos tempos tornarão claro.

2. Muito se tem escrito sobre as causas da derrota de Hillary Clinton e do Partido Democrata. Como todos os factos políticos presta-se a múltiplas interpretações por razões de sensibilidade pessoal, visão do mundo, e, naturalmente, motivações ideológicas. Mas há uma faceta relativamente pouco discutida e que merece uma análise mais profunda, relacionada com o seu (re)posicionamento político. Naturalmente que também é susceptível de várias interpretações não coincidentes. Aqui vou propor uma leitura que me parece não só plausível como merecedora de reflexão, sobre a deslocação do Partido Democrata das questões da economia política — ligadas ao bem-estar da classe trabalhadora —, para as políticas de identidade e os direitos das minorias. Essa deslocação foi, tudo indica, uma causa maior da derrota de Hillary Clinton. Tradicionalmente o Partido Democrata tinha a sua base fundamental de apoio na classe trabalhadora, nos sindicatos, e, em geral, nos grupos mais desfavorecidos da sociedade norte-americana. Foi assim nos tempos de Franklin D. Roosevelt, nos anos 1930 e 1940. Foi assim nos tempos de John F. Kennedy, nos anos 1960. Foi ainda fundamentalmente assim nos tempos de Bill Clinton, no início dos anos 1990: o slogan da época, it´s the economy, stupid, não deixa dúvidas.

3. No partido Democrata, e em muitos dentro e fora dos EUA, as duas vitórias de Barack Obama criaram uma ilusão política. Uma nova coligação de sectores progressistas da sociedade norte-americana tinha emergido de forma permanente. Estava destinada a ser vitoriosa. O carisma e a liderança de Barack Obama ajudaram a sedimentar essa ilusão. Perpetuaria os democratas no poder, por razões simultaneamente demográficas e culturais. Essa coligação integrava, supostamente, a generalidade dos jovens — a geração do milénio —, das mulheres, dos afro-americanos, dos latinos, dos asiáticos, dos judeus, dos muçulmanos, dos gays e ambientalistas. A classe trabalhadora tradicional, o proletariado na linguagem marxista, já não interessava. (Nem a classe média menos instruída.) Representavam o passado, não o futuro. Estavam em diminuição pelo efeito conjugado da desindustrialização e da maior dinâmica demográfica das minorias. Além do mais, a classe trabalhadora menos qualificada (ironicamente a mais exposta aos males da globalização), era preconceituosa, agarrada a valores tradicionais e tendencialmente nacionalista. Tudo isto pecados graves para o progressismo pós-moderno, obcecado com as minorias e as políticas de identidade e esquecendo-se da economia e dos derrotados da globalização que não encaixavam no seu tipo-ideal. Esta visão política simplista está, paradoxalmente, na origem do populismo e da erosão das próprias ideias progressistas, como vou mostrar em seguida.

4. O populismo está em ascensão nos antigos bastiões da esquerda social-democrata / socialista / trabalhista, que tem no Partido Democrata a sua referência norte-americana. A viragem do Estados do rust belt (“cinturão de ferrugem”) para Donald Trump foi um factor determinante no desequilíbrio, a seu favor, do colégio eleitoral que escolhe o Presidente da República. Com as devidas adaptações, similar processo de transformação está a ocorrer na Europa e de uma maneira muito evidente em França. As regiões em declínio industrial do Nordeste do país, junto à Bélgica, tornaram-se, nos últimos tempos, uma das bases mais sólidas de apoio da Frente Nacional de Marine Le Pen. Tal como nos EUA, a maior parte da esquerda faz parte do establishment e das elites que, justa ou injustamente, são vistas como os grandes responsáveis pela crise e deterioração das condições de vida. O populismo surge, assim, como uma dupla reacção: primeiro, uma reacção aos males da globalização — fundamentalmente responsabilidade da direita neoliberal que só vê o mundo pelas lentes da economia e competitividade; segundo, uma reacção à extrema diversidade cultural — fundamentalmente responsabilidade da esquerda multiculturalista que tende a só ver o mundo pelas lentes das minorias e das políticas de identidade. Voluntária ou involuntariamente, ambas corroeram a lógica alternância democrática entre o centro-direita e o centro-esquerda, instalada nas últimas décadas.

5. O progressismo pós-moderno coloca grandes esperanças políticas nas minorias, como substitutos da classe trabalhadora perdida. Implicitamente, pressupõe que as minorias estarão destinadas a assegurar a continuidade de políticas progressistas em matéria de família, igualdade de género, direitos dos gays, ambiente, etc. Destronarão a classe branca trabalhadora tradicional e os seus valores conservadores. Pressupõe, também, que as múltiplas minorias podem coexistir harmoniosamente, sem conflituarem entre si nos seus valores, visões do mundo e reivindicações. Mas as minorias são mesmo automaticamente progressistas e não têm reivindicações conflituais entre si? No mínimo, isto é uma visão muito optimista. É fácil demonstrar as contradições desta ideia. A maior parte das minorias que hoje se encontram nas sociedades dos EUA e da Europa são culturalmente conservadores. Vêm de sociedades tradicionalistas. Na Europa, têm origem no Sul do Mediterrâneo e estão imbuídas de valores tradicionalistas islâmicos. Nos EUA, vêm da América Central e do Sul e estão imbuídas de valores tradicionais cristãos e católicos com tonalidades latino-americanas. Votam nos partidos de esquerda porque têm receio de ser expulsos, ou não se sentem parte integrante da sociedade. Quando passam a sentir-se parte da sociedade do país de acolhimento, engrossam o núcleo da população culturalmente e politicamente conservadora, nas suas diferentes versões.

6. O fenómeno é bem visível com a população latina dos EUA, o grupo em maior expansão demográfica. Em questões como a família, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou o aborto, os latinos estão bem mais próximos do núcleo duro do Partido Republicano e dos valores cristãos protestantes e evangélicos. O seu grau de religiosidade e visão do mundo tradicionalista afasta-os do secularismo e valores pós-modernos dos democratas, que habitam as grandes e cosmopolitas cidades costeiras, num mundo à parte. Quanto ao conflito entre os valores da igualdade de género e emancipação feminina (tal como são entendidos usualmente no Ocidente), com culturas tradicionalistas como, por exemplo, a islâmica, são demasiado evidentes. A expansão do uso do véu e do burquini, as piscinas separadas, o respeito pela religião, a sobreposição do sagrado ao direito à crítica, são, apenas, alguns dos mais nítidos sinais de uma revolução conservadora em marcha, de tonalidades não ocidentais. O mesmo se pode dizer entre uma concepção tradicional-religiosa do casamento, exclusivamente como união entre homem e mulher, e a concepção secular pós-moderna que o alarga a pessoas do mesmo sexo. Nada indica que pela ascensão social e política de culturas minoritárias o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou a emancipação feminina, por exemplo, vão conseguir maior aceitação social. É até previsível, se estas culturas mantiverem ancoradas nos seus valores tradicionais — como as políticas multiculturais propiciam —, um refluxo do apoio a essa transformação social.

7. Provavelmente estamos a assistir a uma transformação estrutural da forma de fazer política de consequências incertas. Para já, é a onda populista, impregnada de nativismo cultural e nacionalismo, que está em ascensão. Como já referido, um dos factores que a impulsionou — ainda que involuntariamente —, foi o abandono pela esquerda da economia política e a sua recentragem nas questões culturais, com ênfase nas minorias e políticas de identidade. Nos EUA, tal como na Europa, fez despertar uma vaga de “nativismo branco”, especialmente intensa entre os mais desfavorecidos. Há, certamente, valores e ideias muito questionáveis e preocupantes nesta vaga populista. Todavia, pretender reduzi-la a uma mera questão de racismo, xenofobia, islamofobia, ou sexismo, é um simplismo intelectual e um erro político de consequências nefastas. Essa população é a única que não tem políticas de identidade, nem beneficia de acções afirmativas ou de medidas específicas de discriminação positiva, mas onde há muita gente pobre e excluída. Sente-se abandonada pela classe política tradicional, da direita e da esquerda. Só os populistas lhe dão atenção e abordam as suas preocupações, frequentemente da pior maneira, prometendo soluções radicais ou absurdas.

8. É wishful thinking a ideia que esta foi a última vaga de uma América branca, conservadora e inculta, e que, a seguir, emergirá uma coligação progressista de minorias e da classe branca mais educada, garantindo um século de democracia progressista. Pode muito bem acontecer o contrário. A grande diversidade está a fragmentar a sociedade dos EUA (e da Europa). Em populações cada vez mais envelhecidas, acrescenta um angustiante sentimento de insegurança cultural ao profundo sentimento de insegurança económica já existente, provocado pela globalização. O resultado é tornar partes crescentes da população receptivas ao discurso populista e a soluções de cariz nacionalista e autoritário, rejeitando, em massa, os partidos do establishment. A democracia sairá seriamente afectada. Mas uma outra revolução conservadora poderá estar ainda em marcha. Ocorrerá quando as preferências de valores oriundas culturais tradicionais, imbuídas de tonalidades não ocidentais, chegarem às instituições sociais e ao poder do Estado. Se as actuais tendências sociais e políticas se mantiverem, o século XXI não será progressista.

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