Quando já se perdeu o nome

A memória doente de uma actriz em fim de vida. Na voz fragmentada dessa mulher ressoa a voz de um país. O 27º romance de António Lobo Antunes, Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera.

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Lobo Antunes que explora mais uma vez os limites dessa semi-consciência onde parece situar-se ao escrever Rui Gaudêcio

“Eu não tenho personagens”, afirmou António Lobo Antunes numa entrevista a este jornal, em 2014, quando publicou Caminho Como uma Casa em Chamas, um romance centrado num prédio de Lisboa e nos seus habitantes. Podia-se acrescentar que também não tem enredos, ou que os livros têm cada vez menos aquilo a que se convenciona chamar uma acção, com princípio meio e fim. São antes deambulações acerca do que é a vida, íntima e de um colectivo, contadas a partir de uma voz interior, quase sempre errática, que recorre a outras vozes convocadas pela memória nas suas falhas ou momentos iluminados, e que preenchem um vazio que vai ganhado sentido(s). Não há início ou epilogo. Há um percurso que o leitor apanha num dado ponto e segue, tantas vezes tacteando, até ele se extinguir. O livro é o que fica entre esses dois momentos.

Como este, o 27º romance de António Lobo Antunes. Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera acompanha um período que se adivinha derradeiro da memória doente, alterada e muito fragmentada, de uma mulher de 78 anos, ex-actriz com uma carreira mediana que passou a infância em Faro e se mudou para Lisboa porque queria trabalhar no teatro. O nome da doença nunca é revelado, mas é a doença que determina a forma e o conteúdo. “e que doença senhor doutor, nem sequer sou velha, aos setenta e oito anos ninguém é velho ainda, qual velha, sou uma actriz a descansar durante esta peça para, como diz o director do teatro, entrar na próxima num papel à minha medida…”

É esta a voz, a voz que profissionalmente decora outras vozes até esquecer a sua, a que o leitor tem acesso privilegiado. Frágil, mas o único meio para se situar num livro que se passa todos ele no espaço mais privado de uma mulher cuja identidade se vai revelando em espasmos à medida que essa identidade também se dilui. Ela é “Dona Celeste”, “filhinha”, “miúda”, mulher do tio, “minha senhora”. Depende do tempo cronológico ou do interlocutor. Se quem a chama ou se lhe dirige é o médico, o pai, a mãe, o sobrinho do marido, a senhora de idade que vai lá a casa dar-lhe comida, mudar-lhe a fralda, ou um dos dois maridos que lhe suplica afecto. Ela nunca gostou mesmo de nenhum. Com um casou-se por interesse, era familiar do director do teatro, e o outro porque sim. “… de há tempos para cá, começo agora a notar, escapam-me episódios, pessoas, até o meu nome palavra…” E a memória recente a perder para a memória remota num jogo literário que se ajusta ao modo de escrita de Lobo Antunes, cada vez mais próximo do que parece ser a deriva da mente, ele que se diz na literatura uma espécie de mediador ou tradutor de vozes.

Esta mulher, como o homem doente, internado num hospital em Sôbolos Rios Que Vão (2010) é tudo o que temos, numa solidão em véspera de fim, perspectiva única ao contrário do que acontece, por exemplo, no monumental romance anterior, Da Natureza do Deuses (2015), onde em vez de uma voz interior existem várias que se cruzam e revelam o tal colectivo tão comum em Lobo Antunes: um país na sua história, com personagens tipo e modos de o verbalizar; e sempre a linguagem, mesmo quando já resta só silêncio, a dizer mais do que qualquer outra coisa sobre o que se é, o que se pensa, e sente e faz.

Sexo, outro por exemplo, de que se sabe porque há um crucifixo que abana no espaldar da cama. Ela nunca amou. A não ser o pai, que além de filhinha lhe chamava cotomiça. “… uma tarde encontrei o meu marido e simpatizámos, ao segundo ou terceiro encontro levou-me para casa dele, sentia-se sozinho, coitado conforme eu me sentia sozinha, passado tempos casámos e pronto, umas palavras, uns papéis, o foguete de um carimbo a estalar no fim, sem estrelinhas, só tinta…”

A doença avança e o tempo e os espaços encadeiam-se numa vertigem de sentidos. As pessoas de uma vida cruzam-se nas suas falas e sabemos de tudo por isso, pelo modo de dizer que confere identidade e que Lobo Antunes conhece e como ninguém nas suas nuances: a língua portuguesa nas suas múltiplas manifestações, apropriações de classe ou género, urbanas ou rurais. E diz-se que continua cada vez  mais próximo da música, pelo modo como tudo soa, do que propriamente da literatura. Sem condescendência para com o leitor que se quiser o acompanha, se estiver para esse exercício de concentração profunda, onde a biografia do escritor aparece muito menos do que nos livros iniciais, mas a metáfora permanece crucial.   Entra-se num livro de Lobo Antunes e reconhece-se o lugar onde se está mesmo sem ver a sua assinatura. Neste não é diferente. Há uma toada, ora harmoniosa ora obsessiva, disruptiva, tantas vezes. É uma memória a desfazer-se num livro divido num prólogo e três andamentos — terminologia  musical — e uma espécie de dormência onde todas as associações são permitidas. Serve tão bem ao actual Lobo Antunes que explora mais uma vez os limites dessa semi-consciência onde parece situar-se ao escrever, e onde está a tal mão que o guia, como costuma repetir nas entrevistas.

Antunes escreve sempre contra Antunes, já se sublinhou em relação ao romance anterior. Há um livro e a comparação inevitável com os anteriores. Ele falha quando não se supera? Da Natureza dos Deuses foi um livro grande de Antunes. Ele sabe disso. Neste seguinte, confirma que continua a perseguir a perfeição e a retratar um modo de ser português — seja lá isso o que for, nem que seja só uma maneira de dizer — como nenhum outro escritor em português o faz. Também por isso é injusto dizer que não arrisca, que se limita a ir com a tal voz única que parece sempre a mesma, ainda que seja múltipla. Este não será o seu melhor romance, mas é mais um grande romance e se nem todos os leitores estão para Antunes, os que estão sabem nunca sair a perder.

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