A voz de Julianna Barwick faz eco em Santa Apolónia

Ao terceiro álbum a americana Julianna Barwick continua a criar música encantatória que parece provir de um lugar só seu. Will, o disco, foi registado parcialmente em Lisboa. A 28 e 29 deste mês vem mostrá-lo a Portugal.

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Julianna Barwick em Lisboa Vera Marmelo

As viagens, os lugares, cidades como Lisboa, as pessoas que vai encontrando pelo caminho, tudo isso serve de inspiração à americana Julianna Barwick, na composição da sua música celestial. Mas não é um livro, um filme ou um encontro com alguém que nomeia como principal influência na feitura da sua música. “Às vezes, quando olho para trás, e me perguntam o que mais inspira a minha música, parece-me que foi o facto de ter cantado nos coros escolares e na igreja, ou seja, o canto colectivo, a força que pode emergir do cantar em grupo”, diz-nos.

Faz sentido. Nos seus discos só ouvimos a sua voz, mas disseminada como se fossem dezenas de vozes. As suas canções – que não são exactamente canções no sentido clássico – são baseadas em repetições vocais predispostas em camadas e reverberações. Parecem replicar as vozes de um grupo vocal. São peças sonoras onde a voz é utilizada como mais um instrumento, construídas em sedimentos até se tornarem numa onda voluptuosa, misto de técnicas corais e abstracções sonoras ambientais.

É essa música circular e encantatória que virá apresentar a Braga (GNRation, 28 de Novembro) e a Lisboa (Teatro da Trindade, 29 de Novembro), no início da sua nova digressão europeia. O pretexto é o seu terceiro álbum Will, que sucede a The Magic Place (2011) e Nepenthe (2013). No último disco volta a criar ambientes emocionais etéreos, mas naturalmente também existem diferenças, até porque é isso que a move.

“Pelo menos, por enquanto, tenho sentido que todos os discos continuam onde o anterior ficou. O mesmo em relação ao tipo de espectáculo que apresento. Entre a minha primeira ida a Portugal, em 2007, quando aí toquei apenas com efeitos vocais e um sampler e o que vou apresentar agora, existem distinções. Agora há mais dinamismo com o teclado moog e sequenciadores. Mas, claro, não será uma produção faustosa.”

Quem conhece a sua música sabe que não é isso que é esperado. A sua música e presença em palco sugerem a criação de quadros intimistas. E é para aí que deverá apontar a apresentação de um disco que foi gravado em lugares tão diferentes como Nova Iorque, na fábrica da moog na Carolina do Norte e nos estúdios Haus de Lisboa, que os músicos do grupo português PAUS exploram. “Conheço o Quim [Albergaria] dos PAUS desde a primeira vez que fui a Lisboa em 2007. Somos amigos desde então e em Setembro do ano passado o Sérgio Hydalgo [programador da ZDB] disse-me que eles tinham acabado de inaugurar um estúdio e fui lá investigar, até porque tinha trazido o mínimo para gravar e comecei a imaginar que talvez pudesse trabalhar em Lisboa, uma cidade que tanto me inspira.”

E assim aconteceu. “Às tantas o Quim perguntou-me se precisava de alguma coisa e eu respondi: um piano. E ele conduziu-me a uma sala onde estava um piano, dizendo-me que havia sido do Sufjan Stevens, que ali o havia deixado depois do último concerto da sua digressão – ao que parece era mais fácil deixá-lo do que regressar com ele para os Estados Unidos. A situação teve qualquer coisa de cósmico porque na feitura do álbum The Magic Place tinha trabalhado numa pequena sala de ensaios do Sufjan. Foi uma coincidência bonita estar ali o piano dele e a verdade é que tudo aquilo foi muito inspirador: não só a história do piano, mas o facto de poder estar a trabalhar em Lisboa num espaço quase só para mim.”

De tal forma assim é que o álbum começa com um tema angelical intitulado St. Apolónia, alusão à estação de comboios do mesmo nome, perto dos estúdios onde permaneceu a criar em Lisboa. “Quase todos os dias passava por uma passagem subterrânea na estação e dava-me para cantarolar por ali”, recorda ela. “Sempre tive essa coisa de experimentar a acústica de espaços semelhantes e um dia resolvi gravar a minha voz, levei o resultado para estúdio e adicionei-lhe alguns elementos e foi assim que nasceu esse tema.” Outro tema gravado em Lisboa foi Beached, com o ex-piano de Sufjan Stevens a ecoar por entre as reverberações vocais, fazendo recordar outro disco gravado em Portugal: o magnífico Ruins de Liz Harris (ou seja, Grouper), registado numa casa perto de Aljezur.

Com essa obra partilha a delicadeza e um certo sentimento de nostalgia, mas enquanto o álbum de Grouper é iluminado pela tristeza, o de Julianna deixa entrar mais luminosidade. “A maior parte do tempo sou eu a cantar do fundo do coração”, ri-se ela, recordando experiências anteriores. “O primeiro álbum foi gravado num estúdio caseiro em Brooklyn. O segundo foi na Islândia, com Alex Somers, num bonito estúdio com piscina e aí, claro, o ambiente que me rodeava foi fundamental. De forma diferente, isso também se reflecte neste disco. Gravei-o em mais do que um local, mas de alguma forma sempre só, o que faz sobressair um elemento de – como vocês dizem – saudade nele, porque fui estando longe de casa.”

Agora Julianna está em casa, antes de iniciar viagem em direcção à Europa, e sente-se envergonhada. Porquê? “Quando chegar a Portugal, e à Europa, sei que me vão perguntar por Trump e não sei o que dizer. Estou ainda mortificada e incrédula, porque depois de Bush, parecia que com Obama havia outra vez espaço para dizermos ao mundo que não eramos uns cabeças de vento. E agora acontece esta regressão. É embaraçoso.”

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