Trump politicamente correcto

A nova correcção política do trumpismo pode representar um acomodamento às tentações populistas e autoritárias que crescem no seio das democracias.

É um dos fenómenos mais bizarros – mas instrutivos – provocados pela inesperada vitória de Trump nas eleições americanas. A chamada ditadura do “politicamente correcto” parece ter passado do campo da esquerda para o da direita mais extrema, contagiando muitos comentadores pretensamente “objectivos” que se esforçam por banalizar o acontecimento e recusam legitimidade democrática às vozes preocupadas com essa eleição.

Durante a campanha, os fãs do magnata do imobiliário acusavam de fanatismo “politicamente correcto” os que ousassem contestar o discurso ou as propostas do seu herói, por mais falsos, irracionais, grotescos, xenófobos e insultuosos que estes fossem, especialmente na boca de um candidato à presidência da primeira potência mundial. Mas a partir do momento em que o impensável aconteceu e Trump triunfou – segundo o colégio eleitoral, recorde-se, mas não de acordo com o voto popular, no qual Hillary Clinton registou mais de 1 milhão de sufrágios do que o adversário –, assistiu-se a um surpreendente coro de opiniões favoráveis à “normalidade democrática” e relativizando os temores suscitados pelo mandato do novo Presidente. Afinal, ele ganhara as eleições por causa do sentimento de exclusão manifestado por muitos milhões de eleitores e, por outro lado, já dera sinais de moderação e sensatez depois de alcançada a vitória. Tudo no melhor possível dos mundos, portanto, apesar dos muros – simbólicos e reais – que Trump se propõe construir para isolar a América na irrealidade do seu sonho. Há uma nova correcção política em marcha, depois da sábia incorrecção que levou Trump à Casa Branca.

É curioso como se procura “explicar” Trump, como o fazia Vítor Bento no PÚBLICO da passada quarta-feira, escamoteando o que Trump efectivamente é, representa e pretende levar avante – por maior pragmatismo que agora se queira ver nele –, enquanto se acusa a “elite bem pensante” de ter qualificado os seus eleitores de “sexistas, machistas, racistas, xenófobos, brutos, primários, deploráveis”. Ora, para sermos honestos, importa não esquecer onde começa a história: o sexismo, racismo, xenofobia, primarismo, caracterizaram toda a campanha de Trump (o que Vítor Bento ostensivamente ignora, tal como ignora o percurso do multimilionário que se gabava de fugir ao fisco, esteve envolvido em fraudes e falências e se propõe reduzir os impostos para os mais ricos em nome dos marginalizados do sistema).

Os eleitores zangados identificaram-se com Trump, apesar de tudo o que não podiam deixar de saber a seu respeito? Pelos vistos, sim. Mas é precisamente isso que nos deveria inquietar e fazer reflectir. Como é que numa democracia como a americana isso foi possível e como é que noutras democracias aparentemente consolidadas as ameaças do populismo e do nacionalismo agressivo estão hoje na ordem do dia? Estaremos a caminho de um “terceiro-mundismo” implantado no seio de sociedades ditas avançadas ou de uma regressão civilizacional típica dos anos 30 do século XX, quando Hitler chegou ao poder através do voto popular? Talvez seja oportuno, por isso, recordar as palavras de Angela Merkel, as mais esclarecidas dos líderes europeus, a propósito dos valores que devem presidir à nossa relação com a América depois do triunfo de Trump, como se eles estivessem já ameaçados: “a democracia, a liberdade, o respeito do direito, da dignidade do homem”.

A nova correcção política do trumpismo pode representar um risco de renúncia a esse património de valores, um acomodamento às tentações populistas e autoritárias que crescem no seio das democracias. É urgente um sobressalto cívico para combatê-las.

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