Ministério Público investiga negócio entre Câmara de Matosinhos e IPSS

Cooperativa Realidade Social beneficiou de cedência de terrenos e de financimento camarário para uma obra de quatro milhões de euros que está por terminar.

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Guilherme Pinto era o presidente da câmara quando foi feito o acordo Nelson Garrido

O Ministério Público está a investigar uma denúncia anónima relativa ao envolvimento da Câmara de Matosinhos numa obra da Realidade Social — Cooperativa de Solidariedade, confirmou o PÚBLICO junto do Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto. O município cedeu duas parcelas de terreno em direito de superfície a esta IPSS criada em 2007 para construir uma unidade de cuidados continuados, creche, centro de dia, no lugar do Seixo, em São Mamede de Infesta, orçada em quatro milhões de euros.

Os trabalhos iniciaram-se em Maio de 2011 com direito a cerimónia de lançamento da primeira pedra, mas cinco anos depois o edifício está abandonado e por concluir. Ao contrário do que estava previsto, o financiamento partilhado, só a autarquia liderada por Guilherme Pinto foi pagando a parte que lhe cabia. Como a banca nunca chegou a financiar a Realidade Social com vista à construção da referida unidade, a IPSS entrou em incumprimento perante o empreiteiro. Só os juros de mora atingiram os 2.268.513,83 euros.

Com o PS envolvido num difícil processo de escolha do candidato às eleições de 2017 — com a concelhia, distrital e movimento independente nascido das divergências de 2013 sem se entenderem —, o caso tem um picante político: a deputada e ex-vereadora Luísa Salgueiro, que a distrital do PS-Porto quer ver a liderar a lista do partido à câmara, esteve na direcção da referida cooperativa entre 2010 e 2015 — a construção começou em 2011. Os autarcas do PS de Matosinhos fiéis à concelhia acusam Luísa Salgueiro de estar envolvida num “esquema de gestão danosa que onerou a câmara em quatro milhões de euros”.

Ao PÚBLICO, Luísa Salgueiro, que se manteve como vogal da direcção da Realidade Social até Dezembro de 2015, altura em que a instituição se dissolveu, nega quaisquer responsabilidades no caso. Confirma que era vereadora quando os terrenos foram cedidos pelo prazo de 50 anos à instituição da qual veio a ser dirigente. Já André Martins, na altura presidente da Realidade Social, fala de um “processo muito complexo com outros antecedentes”. Ao PÚBLICO, garante que apresentou à câmara “condições para financiar a obra, mas o presidente Guilherme Pinto não as aceitou”.

Depois de ter os terrenos na mão, a cooperativa celebrou um contrato de empreitada com a ABB — Alexandre Barbosa Borges e as responsabilidades de cada um ficam bem definidas. A construtora ficaria responsável por fazer os projectos, concurso, execução da obra e exploração e a cooperativa pela fiscalização dos trabalhos e pela comparticipação em parte dos custos de construção do complexo”.

No dia 12 de Abril de 2011, a câmara deliberou apoiar a execução dos projectos de edifício e infra-estruturas do equipamento, atribuindo um subsídio para a comparticipação financeira no valor de 1,6 milhões de euros a pagar em dois momentos: deste bolo, 600 mil euros seriam disponibilizados ainda em 2011 (havendo uma fatia de 100 mil euros que seria logo disponibilizada); um ano depois, a câmara disponibilizaria o resto, um milhão.

No dia seguinte, na sequência da decisão do executivo, a câmara e a cooperativa assinaram um protocolo, em que ficou expresso (cláusula IV) que a “falta de cumprimento ou o desvio dos seus objectivos por parte da instituição implica a devolução da verba atribuída”.

Sem esperar pela justiça

Bastaram 14 meses após o início dos trabalhos para que o empreiteiro suspendesse a obra por falta de pagamento, dando origem a uma longa troca de argumentos. No final de 2012, o construtor notificou a Realidade Social para a dimensão da dívida em causa e a resposta chegou a 28 de Dezembro de 2012, com a cooperativa a dizer não ter condições para pagar e endossando “qualquer pagamento para a câmara, na qualidade de proprietária do imóvel e principal subsidiador da obra”.

Sem consenso à vista, a ABB avançou, em Março de 2015, com uma acção no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAFP) contra Realidade Social e a Câmara de Matosinhos, acusando-as de “incumprimento com as suas obrigações contratuais”. Nessa acção, a ABB revelava que “executou trabalhos no valor global de 3.617.336,99 euros (já com IVA) tendo recebido 1.780.365,43 euros”. A construtora disse ao PÚBLICO que a obra encontra-se parada desde Julho de 2012 e o trabalho realizado refere-se “a movimentação de terras geral dos edifícios e loteamento; execução das infra-estruturas e arruamentos do loteamento; execução da estrutura, trabalhos parciais das especialidades e fecho pelo exterior dos edifícios”.

A autarquia contestou os termos da acção, mas acabou por fazer um acordo, tendo sido fixado o valor da obra em 3.961.475,50 euros. A câmara assumiu então o pagamento da dívida em três tranches (falta pagar 756.118,16 euros que serão liquidados em Novembro de 2017). “Por força da resolução do contrato de constituição do direito de superfície, a autarquia fica com o direito de fazer sua a propriedade da benfeitora implantada no seu imóvel”.

Os eleitos socialistas não poupam críticas ao presidente da câmara, o independente Guilherme Pinto, acusando-o de se ter “precipitado ao pagar uma dívida que não era sua”. Entendem que a câmara tinha de esperar pela decisão do tribunal e só depois deveria pagar, se fosse esse o entendimento do TAFP. “A câmara ficou sem quatro milhões e com uma carcaça”, aponta o vereador do PS, Ernesto Páscoa, sublinhando que “este não é o único processo quente que a câmara tem em mãos”. O autarca e líder da concelhia socialista espera que as “autoridades investiguem o que se passa em Matosinhos”.

Carlos Alberto, deputado municipal que se desfiliou do PS, afirma que o “negócio foi feito para salvar a deputada PS, Luísa Salgueiro, que fazia parte da direcção da Realidade Social”.

Guilherme Pinto desvaloriza as críticas e, em declarações ao PÚBLICO, confirma que foi a autarquia que pagou a obra. Quanto à dívida, revela que está a ser saldada de acordo com um cronograma de pagamento que ficou determinado pelo tribunal. Também desvaloriza o facto de a obra estar parada. “Será retomada depois de o projecto inicial ser reformulado. A ideia é construir apenas uma unidade de cuidados continuidades, desistindo-se da creche e do centro de dia”, justifica o autarca.

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