A vidinha continua – seja qual for a tragédia

Cão Solteiro e Vasco Araújo apresentam até domingo, no Teatro Maria Matos, uma tragédia próxima da mundanidade.

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JOANA DILÃO
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Diga-se a palavra “tragédia” e aquilo que toma conta dos pensamentos de qualquer cidadão será o episódio avulso de um filho que mata os pais, umas cheias desembestadas que devastam toda uma região, um número obsceno de pessoas que morre a abordo de uma embarcação precária tentando alcançar uma vida nos mínimos da decência e da segurança. A primeira imagem a vir à cabeça não costuma tomar a forma da tragédia clássica grega, mas sim a de acontecimento triste de dimensão ciclópica. E é por aí que vai Isto É Uma Tragédia, espectáculo da companhia Cão Solteiro em colaboração com o artista plástico Vasco Araújo, em cena no Teatro Maria Matos (Lisboa), entre 17 e 20 de Novembro.

Pela quarta vez, Cão Solteiro e Vasco Araújo juntam as cabeças para criar um espectáculo de raiz. O desafio partiu de Araújo, quando informou o colectivo que “adorava fazer uma tragédia”. “Foi divertido porque começámos por ter todos muitas opiniões acerca disto”, diz Paula Sá Nogueira, que manifestou de imediato (não foi a única) a sua falta de interesse. Mas as resistências não foram todas da mesma ordem e após alguma discussão sobre a possível abordagem à proposta – se seria “uma coisa arqueológica respeitando todos os preceitos”, se seria “uma actualização para os tempos modernos” –, decidiram avançar, convencidos de que, na verdade, partiam de uma impossibilidade.

“Li uma série de coisas e aderi a uma que diz não ser possível sequer fazer a tragédia porque a tragédia já não existe”, diz Paula Sá Nogueira. “Os valores alteraram-se de tal maneira que o sentido do trágico clássico se perdeu e hoje o usamos no quotidiano para falar de coisas muito tristes.” Daí que o texto de José Maria Vieira Mendes para Isto É Uma Tragédia assente na mundanidade. Quando Sónia Baptista entra em palco, surpreendendo-se com o público, continua na sua vidinha, esperando pelos outros actores, indo e voltando dos camarins com uma salada que vai mastigando e que depois partilha com quem se segue, gabando o sabor apurado obtido com o vinagre balsâmico de sidra.

Se a tragédia na antiguidade clássica “era um estratagema para civilizar e educar as pessoas”, acrescenta Vasco Araújo, hoje assistimos a “uma banalização do termo, que já não é educativo”. Daí que o título do espectáculo prefira dizer “Isto” e não “Isso”, puxando a proximidade a palco, preferindo-a à distância. E essas duas dimensões estão sempre em palco, porque Isto É Uma Tragédia se vê como uma sessão de trabalho de uma companhia de teatro que testa a possibilidade de pôr em palco uma tragédia, experimentando uma cenografia em que as cortinas simulam as colunas gregas, em que uma monumental escadaria é desenhada no papel e em que a tragédia clássica aparece secundarizada por assuntos triviais, palavras e frases que ninguém se lembrará de ter proferido no final do dia.

Numa peça de múltiplas camadas, há o reconhecimento de que, como quase sempre com o Cão Solteiro, os temas recorrentes aparecem – mesmo que contra vontade – numa obsessão com “aquilo que fazemos com as nossas horas de vida”, sob o efeito “da expectiva, do medo e do desejo do último momento”.

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