"A solidariedade não é uma prenda para os refugiados. É um dever legal da UE"

O politólogo, filósofo, sociólogo francês Sami Naïr, especialista em questões migratórias, defende que seria melhor a Europa preocupar-se menos com a assistência aos refugiados e deixá-los seguir caminho.

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"A Europa está em vias de descobrir a diversidade do mundo e não está preparada para isso" Enric Vives-Rubio

Sami Naïr, politólogo, filósofo e sociólogo francês, especialista em questões migratórias, falou com o PÚBLICO antes da sua intervenção no Congresso Internacional do Conselho Português para os Refugiados, que se realiza esta quarta-feira na Fundação Calouste Gunbenkian, em Lisboa, com o tema “O futuro da Europa depende do futuro dos refugiados”.

Como vê a eleição de Trump nos Estados Unidos?
O fenómeno Trump é a expressão de uma crise profunda dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, a expressão da crise da globalização liberal que os próprios EUA lançaram nos anos 1980 e 90. É como que uma reacção caótica à transformação que os EUA se submeteram em resultado do seu domínio à escala planetária.

Que efeitos terá?
A questão é saber o que é que ele vai fazer. Respondo: muito pouco. Penso que vai dar ao ódio popular que conseguiu construir um bode expiatório: os imigrantes sem papéis, provavelmente expulsará uma pequena parte. Penso que vai ter uma política de cooperação fria com a Rússia, para estabilizar a situação internacional sem mudar nada. E como é um homem de negócios, quando chegar ao poder a realpolitik vai-se impor.

E o efeito na Europa, na direita populista?
Vai trazer uma potencialidade histórica para a extrema-direita. Porque inscreve-se na corrente do Brexit, da corrente da extrema-direita em França, na Alemanha, na Bélgica, em Itália, um movimento que é uma recusa, mas reaccionária (no sentido geométrico e não político) contra a Europa, a globalização, os estrangeiros, o multiculturalismo.

Vão aproveitar isto. É preciso sublinhar que isto vem desta globalização liberal sem controlo e que há problemas reais vindos da desordem na sociedade. As pessoas que estão numa situação de desemprego, com uma luta muito dura para ter trabalho, para construir um futuro, não percebem porque há tantos estrangeiros. E ninguém explica. Assim, rejeitam o que é diferente.

É mais fácil ter medo da imigração do que ver o seu potencial?
É a reacção imediata. Porque é que a Europa recusou os refugiados? Não acredito que os Governos sejam pouco solidários. A Europa pôs-se numa situação em que não pode fazer nada por causa da política de estabilidade – que fez com que há 20 anos não tenhamos passado a barreira dos 3% em crescimento, não há criação de emprego estável, a precariedade substituiu os contractos, há uma geração inteira condenada pela crise de 2008. Como ter uma política de integração para quatro milhões de refugiados – é preciso pagar casa, educação, quem vai pagar? Se não conseguimos pagar para nós próprios…

Como reverter esta ideia?
Há um dever de solidariedade. Este é, na União Europeia, imposto pela lei. Não é um presente que damos aos refugiados. É a Convenção de Genebra que impõe a aplicação da lei internacional para ajudar pessoas em situação de perigo, do mesmo modo que a lei exige que ajudemos se virmos alguém ferido – se não, somos acusados de não prestar assistência a pessoa em perigo.

Percebo que não o possa fazer a 5 milhões de pessoas. Isso não significa que não se possa fazer nada. A Europa violou os seus valores. Em Setembro do ano passado decidiu-se receber 160 mil pessoas. Um ano depois, apenas 0,7% conseguiram. Levaria 34 anos até aceitar os 160 mil!

O que é então possível fazer?
Vou deixar de lado a questão dos imigrantes e falar dos refugiados. É preciso fazer os possíveis para lhes dar o estatuto de refugiados. Se a UE vir que não tem meios económicos de o fazer, em vez de os fechar no primeiro país onde cheguem, damos-lhes um passaporte de trânsito que lhes permita circular. Aumentar o financialmento do ACNUR e permitir a circulação. E haverá sítios que os queiram receber. Mas o que lhes estamos a fazer? Ou voltamos a mandá-las para a Turquia ou deixamo-las fechadas em campos na Grécia.

A questão central é se queremos ter refugiados como prisioneiros ou se queremos que eles sejam livres para circular. Não podemos pensar em dar alojamento, etc, a todos. Há algo de extremamente perverso: o Estado espanhol, por exemplo, quer receber 327 refugiados. Vamos dar-lhes apartamento, inscrevê-los na escola etc. Mas não queremos ouvir falar de todos os outros. Mais valia não dar nada a nenhum e receber um milhar de refugiados que pudessem, eles próprios, encontrar trabalho em Espanha.

A liberdade é o mais importante?
Conheço muitos refugiados, e ninguém quer caridade, não são mendigos. Dizem: ‘Queremos apenas que não nos expulsem e que os dêem a possibilidade de encontrar um apartamento, um trabalho, trabalharemos em qualquer coisa.’ Conheci um médico sírio, especializado, a trabalhar num bar em Paris.

O que é para si essencial pensar?
Que sociedade vamos ter. Estamos num momento de viragem civilizacional. Há uma regressão considerável da igualdade. E a questão que me coloco é: qual será o nosso futuro? E a resposta que posso dar – não sou profeta – é que é uma escolha. Depende de nós. Ou aceitamos a continuar em direcção à barbárie, e vimos historicamente onde isso leva, ou construímos uma sociedade civilizada, e isso significa mais solidariedade, mais igualdade, e mais envolvimento cidadão.

A Europa tinha uma ideia abstracta da diversidade do mundo. A parte da Europa que conhecia esta diversidade em concreto era a parte pior, porque era a que fez a colonização, que foi aos outros continentes para encontrar seres humanos que dominou. Hoje o mundo está em cada aldeia, e cada aldeia tornou-se a expressão do mundo. A questão é: a Europa está em vias de descobrir a diversidade do mundo e claro que não está preparada para isso, por isso a resposta é simples: é necessário um grande trabalho pedagógico que começa na escola primária. Explicar às crianças o que são os outros. Temos de confiar na pedagogia. Porque como dizia Hegel, as sociedades só se colocam problemas que conseguem resolver.

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