Os filhos da nação

American Honey é um dos grandes filmes do ano: um olhar arrebatado sobre a juventude sem futuro da América profunda.

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Um filme, qualquer filme, não é apenas um objecto que existe isolado por si só; o modo como olhamos para ele é sempre, inevitavelmente, moldado pelo momento em que o vemos e pelas circunstâncias que rodeiam a sua criação. American Honey é exactamente o mesmo filme, hoje, que era em Maio, quando teve a sua estreia na competição do festival de Cannes; o olhar que a realizadora Andrea Arnold nele pinta sobre a América profunda, sendo o mesmo de há seis meses, é necessariamente visto hoje de modo diferente face às circunstâncias.

Quem conhecer as obras anteriores da cineasta britânica — Sinal de Alerta (2006), Aquário (2009) e O Monte dos Vendavais (2010) — sabe que de Arnold não se deve esperar a visão tradicional do “realismo inglês”. Quem reparou que o seu Monte dos Vendavais adaptava de modo bastante fiel o clássico de Emily Brontë mas tornava negra a cor da pele de Heathcliff terá percebido que a cineasta procura outras maneiras de olhar para o mundo que nos rodeia. American Honey confronta-a com a “atracção do abismo” da road trip pela América profunda (armadilha onde tantos cineastas europeus se deixaram cair) e fá-lo com uma câmara vertiginosamente arregalada (grande trabalho do director de fotografia Robbie Ryan), que filma as árvores, os parques de estacionamento, as estradas sem fim, os subúrbios elegantes, com o mesmo abandono lírico de um Terrence Malick e seguidores. Mas nem Arnold é uma mística nem as suas personagens são existencialistas: o filme começa com a “heroína” Star aos caixotes à procura de comida para sustentar duas crianças, e quase três horas depois fecha o círculo numa visita a uma casa de mãe ausente e três miúdos onde Star tem um misto de déjà vu (onde reconhece a vida a que escapou) e profecia (porque ainda pode voltar a cair nela).

American Honey, então, é uma viagem pela América jovem sem futuro, abandonada pelo “sonho americano” e com o hedonismo da música e do good time como único motor. A nossa guia (a estreante Sasha Lane) decide fugir à ausência de futuro do seu canto do Oklahama, aceitando o convite para integrar uma equipa de adolescentes que viajam pelo país vendendo assinaturas porta-a-porta — chama-se futilidade, é uma actividade arcaica, último recurso desesperado, num mundo de serviços como é o nosso. (A origem do filme está numa reportagem do New York Times sobre estes grupos de adolescentes que vivem de modo quase marginal.) Arnold transplanta para a América aquele que é e sempre foi o tema central do cinema britânico — a luta de classes, a disparidade económica, também e cada vez mais uma questão central da sociedade global — mas nunca faz dele o centro do filme: esta road trip é também uma viagem iniciática da vida, do amor, do mundo real, tão desconcertante como exultante. Faz suas as palavras de Renoir na Regra do Jogo: “toda a gente tem as suas razões”. Não é um diagnóstico, não é um sintoma. É um retrato dos “filhos” que uma nação vai deixando para trás quase sem o compreender. É um dos filmes que já estão a marcar 2016.

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