Das Cruzadas ao Daesh, passando pelo Ultramar, uma anatomia da guerra

Romance da Última Cruzada, o mais recente espectáculo da companhia Visões Úteis, disseca o modo como se constrói a representação da guerra.

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RUI FARINHA/NFACTOS
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Uma fotografia a preto e branco de grandes dimensões, mostrando um soldado caído, mas que não está morto, já que soergue ligeiramente a cabeça e parece perscrutar com ansiedade o seu campo de visão mais próximo, domina a cena. A imagem está dentro de uma caixa aberta, que pode ser uma mala, ou uma espécie de ex-voto, ou uma sala de teatro em miniatura.

Romance da Última Cruzada, o espectáculo que a companhia portuense Visões Úteis estreou ontem em Coimbra, no Teatro Académico Gil Vicente, e que está a partir desta noite em cena no Armazém 22, em Vila Nova de Gaia, é um sinuoso exercício de aproximação a esta fotografia. Através de muitas histórias de guerra, das cruzadas medievais ao Daesh, da I Guerra Mundial à guerra colonial, a espiral narrativa vai sempre voltando ao soldado caído, numa órbita cada vez mais estreita, revelando pouco a pouco a situação retratada na imagem.

Uma dimensão detectivesca que aproxima este espectáculo do anterior projecto da companhia, Locus Logro, no qual os espectadores deambulavam pelas ruas de Campanhã e elaboravam a sua própria hipótese para o desaparecimento de uma mulher. Mas o que interessou à companhia dirigida por Ana Vitorino e Carlos Costa foi, em ambos os casos, sondar os mecanismos de representação, explorando esse espaço entre os factos e o modo como estes são depois narrados por quem os testemunhou. O propósito de Romance da Última Cruzada é em boa medida tornar esse espaço visível.

O título do espectáculo inspira-se no livro homónimo do major britânico Martin Gilbert, um actor que combateu na I Guerra e que depois montou um espectáculo baseado na sua experiência e publicou, nos anos 20, a obra que lhe asseguraria a posteridade. "Fascinou-nos o modo como ele falava de si, e isso levou-nos a outras guerras, como a participação portuguesa na guerra colonial", explica Carlos Costa, sublinhando o "fio condutor" que, não obstante todas as diferenças, é possível traçar entre "o modo como se contou a partida para as Cruzadas com Ricardo Coração de Leão e o modo como jovens portugueses da periferia urbana, mil anos depois, contam a sua experiência de partir para combater pelo Daesh, grosso modo no mesmo sítio".

Interpretado por Carlos Costa, Ana Vitorino e Inês Carvalho, também responsável pela concepção plástica, o projecto levou cerca de um ano a construir e envolveu leituras de relatos de guerras, consultas de arquivos, entrevistas pessoais, e o recurso a documentos como o Manual de Viagem para o Estado Islâmico ou a utilização dos perfis de Facebook dos portugueses que foram juntar-se ao Daesh.

Os jornais foram outra fonte de informação: uma cena passada na I Guerra em Moçambique é directamente inspirada numa série de reportagens que os jornalistas Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia) fizeram para o PÚBLICO. E outro repórter fotográfico deste jornal, Paulo Pimenta, assina a fotografia de Romance da Última Cruzada e é o autor da já referida imagem do soldado caído, que centra toda a narrativa.

Sem acesso à experiência directa da guerra, a matéria-prima com que a companhia trabalhou, observa Ana Vitorino, foram os relatos deixados pelos "intermediários, que operam sobre factos, testemunhos, documentos, e os transformam em histórias, e depois trabalham a linguagem para que essas histórias passem para o público, construindo assim a nossa memória colectiva das guerras". E é a maneira como o fazem, sublinha, que "é fulcral para o modo como as pessoas aderem ou não à ideia de guerra, e esta se vai ou não perpetuando".

Nesse sentido, os actores em palco representam uma representação, e é talvez para tornar essa condição mais visível que se comportam simultaneamente como actores e como narradores omniscientes que nos dizem previamente o que eles próprios, actores, vão fazer.

E se a representação da guerra se faz com palavras, também se faz com imagens. Ana Vitorino lembra o exemplo recente da imagem do menino sírio morto à beira de água numa praia turca para argumentar que "a acumulação de factos, os números de mortos, as datas, os ataques", acabam por "abstractizar" os conflitos, e que às vezes "uma imagem pode causar um impacto emocional que altera o modo como as pessoas sentem a ideia de guerra".  

O que, como acontece constantemente na peça, nos traz de novo à fotografia do soldado caído, que Inês Carvalho, munida de um cavalete, vai desenhando com base no que vê — e coloca-se, significativamente, numa posição em que o seu olhar coincide com o do público -, mas também influenciada pelo que ouve dizer aos seus colegas de palco.

E sem levantar demasiado o véu, pode dizer-se que no final saberemos que este soldado está na terrível e irónica situação (acontece noutras guerras, mas aqui recupera-se um episódio verídico da guerra colonial) de saber que os seus camaradas estão perto, mas talvez não o possam salvar. Ou será que o pelotão, ao qual cumpre acatar as ordens que recebe, tem algum espaço de manobra para agir por sua livre iniciativa? Ou será que o pelotão é o público?

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