Marcello, visto dos trópicos

Uma nova biografia de Marcello Caetano, interessante para o grande público.

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O último presidente do conselho do Estado Novo no seu programa de TV DR

Como refere António Costa Pinto no prefácio a esta obra, o presente livro é a terceira “grande biografia” de Marcello Caetano publicada em poucos anos. Curiosamente, nesta incursão pela vida do último Presidente do Conselho do Estado Novo, Francisco Palomanes Martinho não refere a existência das biografias da autoria de José Manuel Tavares Castilho (Marcelo Caetano. Uma biografia política, 2012) e de Luís Menezes Leitão (Marcello Caetano. Um destino, 2014).

Não se trata, aliás, da única lacuna deste livro, podendo mencionar-se omissões de obras cuja consulta teriam por certo enriquecido a investigação — honesta e trabalhosa, reconheça-se — do historiador luso-brasileiro, docente da Universidade de São Paulo, e autor de inúmeros e meritórios trabalhos sobre o corporativismo, o autoritarismo, a direita e a extrema-direita.

Assim, por exemplo, para a compreensão da marca da influência paterna na trajectória do jovem Marcello seria importante acompanhar os textos de José Maria Alves Caetano, reunidos em 2013 na obra O Apostolado Cívico pela Escrita. Outra influência determinante, a de Monsenhor Pereira dos Reis, bem justificava a consulta de Mons. Pereira dos Reis: perfil biográfico. Antologia de cartas e outros escritos, livro organizado por Fernando Cristóvão em 1980, por ocasião das comemorações do centenário daquele sacerdote. Mais grave se afigura a omissão de Conversas com Marcello Caetano (1973), de António Alçada Baptista, obra que valeu a este último ser apodado, por Mário Soares, de “António Ferro de Marcelo Caetano”, e que se afigura um livro essencial para conhecer o pensamento do sucessor de Salazar em vários domínios.

Os depoimentos memorialísticos ou os perfis biográficos de personalidades que se cruzaram com Marcello Caetano encontram-se igualmente ausentes do livro, sendo especialmente notórias as lacunas das Memórias de um amigo de sempre, Pedro Theotónio Pereira, da fotobiografia de um indefectível marcelista, Baltazar Rebelo de Sousa, da autoria do seu filho (Marcelo Rebelo de Sousa, Baltazar Rebelo de Sousa, 1999), ou dos livros publicados, após o 25 de Abril, pelo ex-ministro Joaquim da Silva Cunha, para não falar da correspondência de um adversário de peso, Santos Costa, compilada por Manuel Braga da Cruz (Correspondência de Santos Costa, 1936-1982, de 2004), ou do importante Cartas entre Marcello Caetano e Laureano López Rodó, de Paulo Miguel Martins (2014). Este inventário de omissões bibliográficas não procura afirmar-se como arguição académica nem visa diminuir o alcance e o interesse inquestionável do livro de Francisco Palomanes Martinho. Com efeito, pretende-se tão-só encontrar uma explicação para algumas das fragilidades desta biografia.

É o facto de não se atentar, na devida medida, na intensa produção intelectual de Marcello Caetano no exílio — ou, beneficiando da proximidade geográfica, de se proceder a uma mais vasta recolha de testemunhos e depoimentos e de um levantamento da biblioteca pessoal do biografado existente na Universidade Gama Filho — que faz o autor valorizar de forma excessiva a correspondência privada que o ex-Presidente do Conselho manteve com Maria Helena Prieto (A Porta de Marfim, 1992), sem dúvida interessante para uma psico-biografia íntima, no quadro daquilo a que Balzac chamava a “franco-maçonaria das paixões”, mas de modo algum decisiva para a compreensão dos seus últimos anos de vida, no Rio de Janeiro, de onde jamais quis regressar.

Por outro lado, o autor afirma, a dado passo, que Marcello Caetano deu pretexto a uma “batalha de memória” por ocasião da sua morte, em 1980, e, mais tarde, aquando do centenário do seu nascimento, em 2006. Esta ideia, sustentada a páginas 38 e seguintes, deve ser contrastada com o facto de a verdadeira “batalha de memória” sobre o legado de Caetano e a agonia do Estado Novo ter tido lugar, isso sim, no imediato pós-25 de Abril, sendo protagonizada não apenas por Américo Thomaz em Últimas Décadas de Portugal (que, note-se, o livro menciona) como por outros autores, que acusavam o ex-chefe do Governo, expressa ou implicitamente, de, com as suas “aberturas primaveris”, ter atraiçoado a herança de Salazar, com isso desbaratando a nação e o império, e sendo o responsável, em última instância, pelo colapso do regime; foi o caso de Jaime Nogueira Pinto em Portugal — Os Anos do Fim (1977) e, em tons mais estridentes, de Eduardo Freitas da Costa, em Acuso Marcelo Caetano (1975), obras que não constam desta biografia.

Poder-se-ia ainda mencionar a ausência, pese o seu escasso valor histórico, mas ilustrativo de uma “guerra de memória”, do livro As Mentiras de Marcello Caetano, que Antonino Cruz e Vitoriano Rosa deram à estampa logo em 1974. A este propósito, num plano distinto e mais elevado, mereceriam também referência os diversos textos de Adriano Moreira publicados após o 25 de Abril (neste livro, só é mencionado A Espuma do Tempo, de 2009), sendo igualmente muito escassa a bibliografia activa do próprio biografado. Do ponto de vista das fontes primárias, o autor fez aturada pesquisa no Arquivo Marcello Caetano na Torre do Tombo, citado em abundância neste livro; porém, ter-lhe-ia sido útil analisar, de igual modo, o espólio de Américo Thomaz existente no Museu da Presidência da República, além de outros fundos documentais.

Apesar destas omissões, o livro não apresenta erros de grande monta (detecta-se, por vezes, alguma imprecisão factual, como quando se afirma, por exemplo, na pág. 421, que “o cardeal primaz de Lisboa, D. António Ribeiro, permitiu que se realizasse o encontro” na Capela do Rato, o que não corresponde minimamente à verdade histórica). Mas, do mesmo passo, não traz dados novos ou surpreendentes sobre a personalidade biografada. Segundo o autor, e em jeito de balanço final, Marcello Caetano foi “mais eficiente como ideólogo do que como expert” (p. 505), o que, convenhamos, é manifestamente pouco para resumir uma longa trajectória política, começada com vinte e poucos anos de idade, na auditoria jurídica do Ministério das Finanças, e interrompida de súbito numa manhã chuvosa de Abril de 1974.

No entanto, se uma apreciação “académica” pode apontar para um veredicto severo, o livro deve ser visto na perspectiva de um auditório mais vasto, porque é seguramente a ele que se destina. E, sob esse ângulo, a presente biografia de Marcello Caetano constitui uma obra acessível e informativa, séria e competente, apoiada numa investigação empenhada e, sobretudo, não contaminada pela obsessão de construir uma “tese” — favorável ou desfavorável, isso pouco importa — sobre o biografado. A magreza das conclusões finais talvez seja um resultado involuntário desta louvável isenção historiográfica. E Francisco Palomanes Martinho, importa dizê-lo, procede a uma reconstrução linear da vida de Marcello Caetano desde os seus primeiros anos até à morte, dando o devido valor à actividade intelectual do biografado antes de assumir funções públicas e permitindo ao leitor conhecer o seu percurso político e académico anterior a 1968, data em que sucedeu a Salazar na presidência do Conselho. Em suma, este é um livro que se recomenda vivamente ao público não-especializado, sobretudo aos leitores que vivam além-Atlântico.

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