Despentes e o feminismo inclassificável

A personagem de polemista assenta bem a Virginie Despentes. Há aqui rasgo suficiente para interpelar o leitor de agora, e também uma enxurrada de lugares-comuns.

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Despentes sente-se King Kong, desencaixada das categorias identitárias normativas © JF Paga

O original francês saiu em 2006 mas a década que passou até à tradução portuguesa não diminuiu o efeito cáustico dos argumentos. Há aqui rasgo suficiente para interpelar o leitor de agora, e também uma enxurrada de lugares-comuns e afirmações inverificáveis ou incompatíveis entre si. A personagem de polemista assenta-lhe bem.

Virginie Despentes (n. 1969) apresenta-se conservadora na forma e provocadora no conteúdo. Teoria King Kong é constituído por um prólogo, Tenentes Corruptas, a que se seguem cinco capítulos não numerados: Enrabo-te ou Enrabas-me?, Impossível Violar Esta Mulher Cheia de Vícios, Dormindo com o Inimigo, Pornobruxas, King Kong Girl. E ainda uma conclusão: Adeus, Raparigas.

Cada parte funciona de maneira autónoma, como se o conjunto não tivesse sido pensado à partida. O tema genérico situa-se entre a crítica feminista ao feminismo e a defesa não da igualdade entre homens e mulheres mas da superação destas categorias, o que por vezes é incompatível com o argumentário da autora.

A proposta ganha forma nas páginas 25 e 93. O capitalismo, “religião igualitarista” ao serviço da classe dominante, fabrica homens de “virilidade guerreira” para que estes a qualquer momento sirvam de “cadáveres gratuitos para o Estado”, enquanto as mulheres são criadas como “escravas dos homens” na medida em que estes aceitem aquele contrato. “Os corpos dos homens pertencem à produção, em tempo de paz, e ao Estado, em tempo de guerra”, defende a autora.

É uma óbvia superação do feminismo dos anos 60 e 70, ao encontro das Teorias Queer, as quais Despentes nunca cita, deixando-as espreitar na bibliografia, pontuada pelas gurus Judith Butler e Teresa de Lauretis, entre outras. A propósito, também aparece o “Manifesto da SCUM”, da feminista americana Valerie Solanas, permitindo supor algum mimetismo biográfico por parte de Despentes.

Especialmente sumarento é King Kong Girl, capítulo que justifica o nome do volume. A versão de King Kong que Peter Jackson realizou em 2005 (a partir do filme homónimo de 1933, de Cooper/Schoedsack) apresenta uma personagem que “não tem pila, nem colhões, nem mamas”, “não é macho nem fêmea”, pois “nenhuma cena permite que se lhe atribua um sexo”, escreve Despentes. O macaco gigante é, assim, uma “metáfora de uma sexualidade anterior à distinção de géneros, tal como foi imposta politicamente por volta de finais do século XIX”.

(Basta abrir à sorte a História da Vida Privada em Portugal – A Idade Média, de 2010, coordenada pelo historiador Bernardo Vasconcelos e Sousa, para se concluir que a divisão entre as categorias sociais homem e mulher, tal como a conhecemos, é muito anterior a Oitocentos.)

Despentes sente-se King Kong, desencaixada das categorias identitárias normativas. Nesse sentido era anunciadora, há uma década, do que agora se descreve por toda a parte como “fluidez de géneros”, outra categoria normativa, outra expressão da biopolítica, hoje vista como libertadora.

Ainda naquele capítulo, mostram-se problemáticas frases como “é exactamente isso que se faz num terço da literatura escrita por homens brancos” e “basta ver o que fazem às mulheres num terço da produção cinematográfica branca contemporânea” – numa e noutra, a ensaísta censura a exibição de poder dos homens sobre as mulheres, considerada um “triunfo de cobardes”.

Os números poderiam até estar correctos, mas pedia-se a Despentes que tivesse ido além dos “terços” e explicado que estudos sustentam a afirmação e, já agora, o que são “homens brancos”.

Os extremos tocam-se. A escritora diz, em tom crítico, que “ser agressivo é viril” e “querer foder a torto e a direito é viril”, mas demite-se de explicar o que entende por virilidade. Será ainda a característica que se atribui às atitudes e ao quadro mental de certa masculinidade ocidental clássica? Virilidade nas classes altas será o mesmo que nas baixas?

É sabido que estamos no domínio do pensamento pós-estruturalista, o qual prescreve que não há nada que seja “natural”, tudo é construído culturalmente. A negação da “natureza das coisas” é terreno pantanoso e no caso de Despentes isso nota-se bastante. Ela tanto desconstrói que dá a volta e regressa à casa de partida, pondo-se inadvertidamente no lugar dos que critica.

A ideia de que “os homens” ou “as mulheres” são um todo coerente e homogéneo é tão incrível como o desinteresse que uma mulher bissexual como Despentes revela face às orientações homo e bissexual e às identidades transgénero (termo que aqui se usa para designar transexuais e intersexuais). Como se estas não alterassem a tese de que o Estado é dono e senhor da expressão de género dos cidadãos.

Aparentemente autobiográfico, o ensaio fala do tempo em que a autora foi prostituta, com pormenores sobre motivação, clientes e método, e contém um impressivo relato da violação de que foi alvo. Esse “trauma crucial”, ocorrido às portas de Paris em 1986, quando tinha 17 anos, depois de uma viagem “punk” a Londres, à boleia, e um regresso a casa, a Nancy, nos mesmos termos, serve-lhe para anunciar que é preciso “retirar a violação do pesadelo absoluto”.

Sustentada em Camile Paglia, Despentes afirma que “as meninas são amestradas para nunca fazerem mal aos homens”. “Estou zangada com uma sociedade que me educou sem jamais me ensinar a ferir um homem se ele me abrir as pernas à força, enquanto essa mesma sociedade me inculcou a ideia de que a violação era um crime de que nunca me iria recompor” (p. 41).

O tema da violação já estava presente no livro (1999) e no filme (2000) Baise-Moi, realizado por Despentes em parceria com a actriz pornográfica Coralie Trinh Thi. Reaparece aqui sob uma forma talvez mais distanciada e bem ideológica: “A violação é um programa político preciso: esqueleto do capitalismo, é a representação crua e directa do exercício do poder” (p. 43)

O ensaio é marcado por frases-chave que abrem perspectivas novas e dariam alento a dissertações mais longas. “Todas as ferramentas de comunicação modernas servem sobretudo para o comércio do sexo” (p. 51). “O que escreve realmente a história dos filmes para adultos, o que a inventa, o que a define, é a censura” (p. 81).

São curiosos dois argumentos que cruzam mais do que um capítulo, sem chegarem a ganhar vida própria, e talvez merecessem. Primeiro: a razia a certos dogmas do feminismo. A linha que clama “empoderar” as mulheres por via da expressão da sexualidade, como no visual arejado e nas coreografias escatológicas de artistas pop, é classificado por Despentes como “explosão do ‘look’ cadela em último grau”, “uma maneira de tranquilizar os homens” e de “viver a alienação através de estratégias se sedução” (p.18).

Por outro lado, Simone de Beauvoir é retirada do pedestal por se ter submetido ao marido e porque em 1948 não apoiou a publicação de um romance de Violette Leduc sobre uma relação lésbica. Menos como crítica, mais como constatação, Despentes regista: “Colette, Duras, Beauvoir, Yourcenar, Sagan, toda uma história de mulheres que têm a preocupação de serem recomendáveis, de darem segurança aos homens” (p. 118).

Segundo argumento curioso: “Os homens costumam imaginar que as mulheres têm imensa vontade de os seduzir e de os provocar. Isto é uma pura projecção homossexual: se eles fossem do sexo feminino, o que eles mais gostariam seria poder excitar outros homens” (p. 65).

O assunto é retomado adiante: “Dir-se-ia que [os homens] têm medo de confessar a si próprios aquilo de que realmente têm vontade, que é foder uns com os outros. Os homens adoram os homens. Eles estão-nos sempre a dizer quanto gostam das mulheres, mas todas sabemos que é tudo uma treta. Amam-se entre eles. Fodem-se uns aos outros através das mulheres, e muitos estão já a pensar nos compinchas quando estão dentro de uma rata” (p.122).

Assinale-se que a tradução, de Luís Leitão, é fora do comum e resulta num texto perfeitamente natural em português (mesmo se “natural” é palavra que não vai bem neste contexto).

A capa, contracapa e respectivos versos, imitam a estética fanzine, própria da cultura punk, que a autora professa. Um trabalho de Rui Silva e Miguel Carneiro.

Com este título, a Orfeu Negro, que até agora trabalhou essencialmente edições de arte, volta-se para os Estudos de Género. Em 2017, informa a editora, será finalmente publicada a tradução para português europeu de Gender Trouble, ensaio canónico de Judith Butler.

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