A doutrina Trump e a ordem internacional

A eleição de Donald Trump como Presidente dos EUA tem potencial para se tornar a maior catástrofe geopolítica do século XXI.

É frequente dizer-se que Trump não tem políticas bem definidas, tendo até agora navegado ao sabor da maré eleitoral. Mas, ao contrário das suas posições sobre temas de política interna norte-americana, as ideias de Trump sobre política internacional têm sido consistentes. Num quadro institucional em que os republicanos controlam os três ramos do governo federal e em que, portanto, o sistema constitucional de checks and balances está deveras limitado, importa analisar qual é esta “doutrina Trump” em política externa.

Fundamentalmente, Trump acha que os EUA estão em declínio e que este declínio resulta dos muitos compromissos internacionais que o país erradamente assumiu. Para contrariar esta tendência, quer acabar com o que considera serem benesses concedidas por Washington a outros Estados. No plano económico, Trump quer dificultar o comércio com países que, em seu entender, competem de forma desigual, retirando assim emprego aos americanos. No plano da segurança, Trump quer evitar que os EUA protejam países que não contribuem o suficiente para a sua própria defesa, e assim retiram aos americanos a capacidade de investir em educação e infra-estruturas.

Há muito que o Presidente eleito dos EUA defende estas ideias. Em 1987, Trump começava uma carta aberta ao povo americano escrevendo que “o Japão e outras nações têm estado a aproveitar-se dos Estados Unidos”, ao não pagarem na íntegra os custos da protecção americana. Três anos depois, em entrevista à Playboy, Trump mostrava-se decepcionado com a “fraqueza” de Gorbatchov e louvava o Governo de Pequim pela repressão na praça de Tiananmen, dizendo que “mostra o poder da força”.

No plano conceptual, esta “doutrina Trump” assenta num tripé: oposição à globalização e ao livre comércio internacional; cepticismo em relação à participação dos EUA em alianças de segurança; e preferência por líderes fortes, sejam ou não democráticos.

Ora, esta doutrina tem um enorme poder desestabilizador em relação aos princípios basilares da ordem ocidental desde a Segunda Guerra Mundial; princípios que, desde a queda da União Soviética, se tornaram a base da ordem mundial. De facto, o tripé da doutrina Trump está em choque frontal com o chamado “tripé kantiano” em que assenta a actual ordem internacional. Kant acreditava que uma conjugação de três factores levaria à erradicação dos conflitos entre Etados: o livre comércio entre as nações; a existência de instituições internacionais que ajudassem à resolução das disputas entre Estados; e uma adequada organização interna de cada Estado pela criação de regimes democráticos. Em larga medida, é este tripé kantiano que nos tem permitido desde 1945 evitar a guerra entre as 44 maiores economias do globo. E é este tripé que a doutrina Trump põe em causa.

Quais serão, então, as consequências da doutrina Trump?

Desde logo, a erosão do regime de comércio livre sobre o qual assenta a economia global, colocando em risco não só tratados como o TTIP ou o NAFTA, mas até a própria Organização Mundial do Comércio. Este proteccionismo terá consequências sérias para a Europa, principal parceiro comercial dos EUA. Poderá ainda levar a uma quebra pronunciada do rendimento dos principais países exportadores, nomeadamente a China. Durante a campanha eleitoral, Trump sugeriu, aliás, a imposição de uma tarifa de 45% aos bens chineses. Até agora, Pequim tem tido poucos incentivos para forçar uma revisão da ordem internacional, da qual muito tem beneficiado. Num quadro proteccionista, porém, o regime chinês — cuja legitimidade política depende em grande parte do crescimento económico — ver-se-á obrigado a criar uma ordem alternativa.

A doutrina Trump levará também à descredibilização das alianças de segurança em que os EUA participam, desde logo a NATO. (Desmantelar alianças militares é, aliás, mais simples do que desfazer tratados comerciais, na medida em que a inacção num momento de crise é suficiente para tornar o mais poderoso acordo entre aliados num pedaço de papel despiciendo.) Ao fazê-lo, irá diminuir os custos em que potências revisionistas como o China ou a Rússia contarão incorrer ao iniciarem uma acção militar contra um aliado dos EUA. A Europa está, também neste aspecto, particularmente vulnerável, já que a sua a defesa depende — quer relativamente a ameaças externas quer, será bom não esquecer, em relação à paz intra-europeia — das garantias de segurança dadas por Washington no quadro da NATO. Se Moscovo acreditar que uma operação militar nos bálticos não enfrentará a oposição norte-americana, a tentação de restabelecer a esfera de influência russa será irresistível. Se Pequim, por seu lado, perceber que Washington não protegerá Taiwan, a autonomia desta terá os dias contados.

Por último, o favorecimento de líderes políticos “fortes” pelo mundo fora contribuirá para aprofundar a actual crise das democracias. Quer pelo seu exemplo de sucesso eleitoral meteórico, quer pela sua doutrina de política externa, o Presidente Trump irá favorecer a ascensão ao poder de lideranças hipernacionalistas — outro aspecto em que a Europa se mostra particularmente exposta, como demonstra o espectro de Marine Le Pen em França. Além do mais, ao privilegiar opositores da democracia como Putin na Rússia ou Xi na China, a doutrina Trump retira margem de manobra aos movimentos democráticos que, pelo mundo fora, se opõem à tirania.

Ao combinar proteccionismo, isolacionismo e autoritarismo, a doutrina Trump coloca em perigo a estabilidade da ordem mundial. Se ainda restavam quaisquer dúvidas à luz dos desenvolvimentos na Síria e na Ucrânia, agora é certo que em breve acabarão as férias da Realpolitik em que temos vivido desde 1991.
 

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