A autoridade moral do trumpismo

O que os trumpistas desejam não é que a esquerda ouça. Eles querem que a esquerda se cale. Não lhes façamos o favor.

Em 2008, quando Obama ganhou a presidência, o Partido Republicano iniciou um exame de consciência e admitiu que teria de fazer melhor para ouvir as pessoas que tinham votado nos Democratas. Prometeu considerar os problemas dos negros, dos latinos e da comunidade LGBT quando tivesse oportunidade de legislar no Congresso. A direita americana encarou o novo Presidente com espírito construtivo e deu o seu melhor por ajudar naquilo que fosse bom para o país, a começar pela reforma do sistema de saúde. No resto do mundo, os opositores do “politicamente correto” de Barack Obama concederam, apesar de tudo, que havia bons argumentos a favor de uma linguagem mais inclusiva e tolerante. E é por isso que a direita americana, tal como a europeia, tem agora autoridade moral para pedir aos progressistas que deixem Trump governar.

Certo? Errado. Uma das primeiras declarações do líder dos republicanos no Senado foi que o seu trabalho seria garantir que Obama não fosse reeleito. O sistema de seguros de saúde muitíssimo moderado que Obama apresentou aos republicanos, inspirado numa experiência republicana a nível estadual, foi sumariamente rejeitado e combatido até ao fim como um exemplo do regresso do comunismo. Passado poucos meses, o Tea Party tomava de assalto o Partido Republicano e foi abraçado pelos canais de televisão conservadores até ao ponto em que entrou no Congresso e impediu Obama de legislar. No fim do mandato ainda conseguiram a proeza de deixar o Supremo Tribunal incompleto só para que Obama não pudesse nomear qualquer juiz que não fosse ultraconservador.

E por tudo isso é mais do que evidente que não, — os trumpistas não têm qualquer autoridade moral para exigir “abertura de espírito” no acolhimento ao Presidente Trump. Mais, a direita moderada deve deixar de utilizar esse argumento para esconder o seu próprio processo de normalização do fenómeno que venceu as eleições nos EUA. Enquanto candidato presidencial, Trump prometeu deportações em massa, assassinar as famílias de terroristas e perseguir judicialmente a sua opositora, entre outras medidas atentatórias do estado de direito. É obrigação de toda a gente que defende o estado de direito — na esquerda, no centro ou na direita — não o normalizar enquanto ele não renunciar a essas políticas. E quem se recusar a denunciá-lo é cúmplice da degradação da democracia em curso no mundo ocidental.

Para falar a verdade, as queixinhas com a suposta arrogância do progressismo são o cume da hipocrisia num momento em que o candidato presidencial mais arrogante que o pós-guerra já viu ganhou as eleições no país mais poderoso do mundo. Ou pelo menos é uma nova fasquia na falta de sentido das proporções. Ou os conservadores acham mesmo que foi modéstia aquilo que faltou para ganhar estas eleições?

O mesmo se pode dizer dos apelos a que os democratas façam agora uma interrupção na defesa da sua base eleitoral para ouvir “o outro lado”. Os democratas não fizeram outra coisa nos últimos anos do que ouvir o outro lado — tanto que muitas vezes se esqueceram das suas próprias convicções. O que os trumpistas desejam não é que a esquerda ouça. Eles querem que a esquerda se cale. Não lhes façamos o favor.

Na vozearia dos últimos dias, os trumpistas e os seus acólitos pretendem disfarçar a sua maior fraqueza: é que eles não são sequer maioritários na sociedade americana. Hillary Clinton tem neste momento quase dois milhões de votos a mais do que Donald Trump, que tem menos votos do que o candidato republicano derrotado em 2012, Mitt Romney. Uma boa estratégia geográfica e a carambola do colégio eleitoral — com uma diferença de cem mil votos em três estados — deu a Trump a Casa Branca. Não nos devemos queixar de um sistema eleitoral que era conhecido e é legítimo.

Mas também não podemos comportar-nos como se a tolerância, a inclusão e cosmopolitismo fossem agora valores de que nos devêssemos envergonhar. Não são. São valores que têm ainda a maioria do povo com eles, e que só passarão a ser minoritários quando desistirmos de os defender.

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