A ameaça do contágio

A vitória de Donald Trump vai repercutir-se na cena política europeia. Esquerdas e direitas deverão “imaginar o inimaginável”, como ver Marine Le Pen vencer as presidenciais francesas ou Beppe Grillo dominar a política italiana. Se o querem evitar deverão mudar de vida desde já.

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A vitória de Donald Trump, um “super-Brexit” a seguir à surpresa do “Brexit”, significa que os europeus devem aprender a imaginar o inimaginável sob pena de despertarem tarde. No curto prazo, isto resume-se em duas perguntas. Estamos preparados para assimilar uma vitória de Marine Le Pen nas presidenciais francesas de 2017? Estamos preparados para enfrentar uma Itália em desmoronamento e governada pelo Movimento 5 Estrelas (M5S) de Beppe Grillo?

É improvável que tal aconteça? Sim, é muito improvável. Mas será mais improvável do que a vitória de Trump parecia há um ano — para não dizer há dias atrás?

As eleições americanas tiveram uma ressonância mundial por se tratar de um brutal choque vindo da mais influente potência mundial, o que cria um universal clima de incerteza. Os dirigentes europeus foram apanhados de surpresa. Reconheceu Paolo Gentiloni, ministro dos Negócios Estrangeiros italiano: “Foi uma surpresa que mudará as coisas no mundo. [Aquela noite] será recordada como histórica.” Mais incisivo foi um tweet de Gérard Araud, embaixador francês em Washington: “Um mundo que se desmorona debaixo dos nossos olhos.”

Não me ocupo aqui dos efeitos estratégicos e económicos, que serão seguramente muito pesados, talvez dramáticos, mas que dizem respeito a outra ordem de problemas. De resto, muitos crêem que as eleições americanas marcam o fim de uma era e a entrada em terra incognita da qual nos faltam mapas. Depois de ter imaginado em 1989 a vitória definitiva da democracia liberal, o politólogo americano Francis Fukuyama vê agora, com o triunfo de Trump, o Ocidente a ser de novo resenhado, a partir da América, por populismos nacionalistas. Podemos suspeitar de que será um daqueles acontecimentos com enorme potencial de contágio sobre a Europa. A influência dos modelos, modas e fenómenos vindos da América é uma constante histórica. Não foi o “trumpismo” que inspirou as insurreições populistas que há muito grassam na Europa. Mas entra agora em cena.

A primeira pergunta deste texto diz respeito ao efeito de estímulo que a consagração do populismo na América previsivelmente terá sobre o quadro político europeu. Há um terreno em que esse impacto parece imediatamente evidente: a imigração e a crise dos refugiados.

Le Pen e Beppe Grillo

Haverá no próximo ano eleições em vários países, designadamente na França, Alemanha, Holanda e, provavelmente, na Itália. Haverá, já em Dezembro, a repetição das eleições presidenciais na Áustria, em que é favorito Norbert Hofer, candidato da extrema-direita. Centremo-nos em Paris e Roma, onde podem ocorrer “terramotos”.

Na França, a Frente Nacional (FN), de Marine Le Pen, estará quase inevitavelmente presente na segunda volta das presidenciais de 2017. É o que registam as sondagens, o que dizem os politólogos e pensam os políticos. É um terreno pantanoso. A esquerda e o centro-esquerda estão balcanizados, desmoralizados e sem projecto. O centro-direita está partido entre duas linhas distintas, uma assumida por Alain Juppé e que crê que uma recuperação económica susterá o avanço da FN, a outra protagonizada por Nicolas Sarkozy e que aposta em “roubar” os temas nacionalistas e identitários à FN, para esvaziar as suas reservas eleitorais, repetindo o que fez em 2007.

Marine Le Pen sabe que tem demasiados anticorpos. Por isso recebe a vitória de Donald Trump como uma benesse. É a prova da potência dos temas identitários, anti-elite e anti-imigração nas democracias ocidentais. Anota um jornalista francês: “As temáticas identitárias e a defesa do proteccionismo económico, já dopadas pelos efeitos combinados da crise migratória e da ameaça terrorista, anunciam-se mais dominantes do que nunca na corrida ao Eliseu.”

A FN sabe que tem um “tecto de vidro”, um limite invisível que não consegue ultrapassar. Com o sistema maioritário e não dispondo de aliados, não pode fazer acordos de desistência na segunda volta das legislativas, o que a mantém praticamente fora do Parlamento e com representações locais muito baixas em relação ao seu voto. As presidenciais são o terreno mais favorável. A simples passagem à segunda volta ameaça fazer explodir o quadro político francês, pois provocará o descalabro do partido que ficar de fora, seja o Partido Socialista, seja os Republicanos.

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Na França, a Frente Nacional (FN), de Marine Le Pen, estará quase inevitavelmente presente na segunda volta das presidenciais de 2017

O secretário-geral do PS, Jean-Christophe Cambadélis, tem evocado a possibilidade de vitória de Marine Le Pen como arma para mobilizar o partido. Está agora perante um quadro mais ameaçador. Marine aposta em que a vitória de Trump radicalize o novo clima mental europeu —  imigração, proteccionismo, nacionalismo, enfim, a soberania nacional contra a UE e os constrangimentos da globalização. E que ajude a tornar mais “aceitáveis” as suas ideias. Poderá imitar Trump e dizer abertamente o que está implícito no seu programa: “A França para os franceses.” Que se passará dentro de seis meses?

Na Itália, o quadro é diverso. Está marcado para 4 de Dezembro um referendo sobre a revisão constitucional. A reforma foi aprovada pelo Parlamento no fim de 2015, numa altura em que o primeiro-ministro, Matteo Renzi, gozava de enorme popularidade. Renzi cometeu o erro de personalizar a consulta popular e associar o seu destino político à vitória do “sim”: “Se perder vou para casa.”

A imprensa — italiana e internacional — encara a vitória de Trump como um extraordinário impulso para os populistas que lideram a campanha do “não”, o M5S e a Liga Norte, de Matteo Salvini (extrema-direita) e como um grave problema para Renzi, que tenta desesperadamente salvar o “sim”, em minoria nas sondagens (52-48%).

Entretanto, Beppe Grillo tornou-se num ardente adepto de Trump, com quem partilha, além dos temas, o desbragamento na linguagem. Celebrou assim a sua eleição: “É uma loucura. Isto é a deflagração de uma época. É o apocalipse da informação, das TVs, dos grandes jornais, dos intelectuais e dos jornalistas. Isto é um vaffanculo (f...) geral.”

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O italiano Beppe Grillo tornou-se num ardente adepto de Trump, com quem partilha, além dos temas, o desbragamento na linguagem getty images

Renzi está numa posição muito difícil. Se perder o referendo, demitir-se-á, o Partido Democrático entrará em ebulição e, se houver eleições antecipadas, o movimento de Grillo tem sérias hipóteses de as vencer, dentro da nova lógica que domina a política italiana: “Todos contra Renzi”. O M5S, que ainda não é um verdadeiro partido, só tem programa negativo: antipolítico, anticasta, antiglobalização, anti-euro, anti-imigração.

Um boomegrang Trump?

Os dirigentes europeus não podem negar o problema. Diz um jornalista francês que já não podem fechar os olhos. “Apanhados entre a pulsão autoritária e niilista, de um lado, e o fanatismo jihadista do outro, temos de escutar a cólera e o ódio que crescem. Os cidadãos são pirómanos com uma caixa de fósforos num armazém de dinamite.”

O comissário europeu Pierre Moscovici já tirou algumas conclusões pensando no próximo ciclo eleitoral: “Esta eleição [de Trump] foi possível porque muitas pessoas sentiram que foram deixadas de lado na globalização. (...) A questão da desigualdade tem de voltar ao topo das prioridades.” Outro problema é a “distância entre as elites e os cidadãos”. Trata-se de evitar que a “próxima catástrofe aconteça na Itália, na França, na Alemanha ou em qualquer outro país. Não quero Marine Le Pen em França.” Por enquanto trata-se de boas palavras. Faltam os actos.

O politólogo holandês Cas Mudde, especialista em extrema-direita europeia, faz uma análise sofisticada e realista ao relativizar o impacto do “trumpismo” tendo em conta o factor tempo. Num artigo no The Guardian (9 de Novembro), começa por sublinhar o evidente papel de estímulo de Trump sobre os populistas europeus: ajuda-os a serem “aceites no mainstream político” e favorece uma viragem à direita perante a “crise dos refugiados”.

Mas prossegue: “A questão chave dos próximos anos vai ser [o modo] como Trump governe.” A sua base política é frágil e contraditória, sendo previsível que subam as tensões entre ele e o Partido Republicano. E conclui: “Enquanto a vitória de Trump pode fortalecer o já considerável ímpeto da extrema-direita europeia nos próximos meses, ela pode voltar mais tarde para a assombrar. O previsível caos da presidência Trump pode levar a uma ressaca popular contra a extrema-direita.” Esta deveria ser mais prudente na celebração de Trump — aconselha Mudde.

O negócio do medo

Há outro aspecto importante. O negócio dos dirigentes populistas é explorar os medos populares, uns reais outros imaginários, condensando-os numa “insurreição” como soube fazer Trump. Escreveu um jornalista: “Não ataquem os eleitores de Trump. São humanos. Têm medo.” O medo é uma das mais potentes e perigosas paixões humanas, mais poderosa do que o próprio ódio.

As duas tentações das elites dirigentes tem sido associar mecanicamente o populismo à economia ou reagir com cenários catastróficos. A paixão populista não se reduz aos “perdedores da globalização”, exprime-se e é potenciada por sentimentos: a insegurança, o medo do futuro, a erosão dos valores tradicionais, o medo ou o desprezo pelo “outro” (xenofobia e racismo), a rejeição das elites que os esquecem e os não escutam. Não podemos esquecer que, contra o que se anunciava, Trump recebeu um grande número de votos de cidadãos com curso superior, que não são de forma alguma “perdedores da globalização” mas que terão sido seduzidos pelo seu nacionalismo, político e económico.

As reacções catastrofistas empolam a força do populismo e da extrema-direita, incitam à passividade, a uma atitude defensiva e à ruptura das pontes com o “povo populista”. A desintoxicação dos medos é uma prioridade política europeia. Observam também os analistas que a “fúria popular” não é necessariamente espontânea mas construída por uma elite política que a incentiva, tarefa em que Trump foi “genial”.

Pablo Iglesias, líder do Podemos e que ao contrário de Trump fala a partir de uma visão de extrema-esquerda, fez há dias uma observação interessante sobre as dinâmicas do protesto. Falava no contexto da luta interna no seu partido, que aqui não interessa, para justificar uma nova viragem na sua linha política. Depois de ter entrado em cena em 2014 com teses radicais, vestiu a pele da social-democracia sueca e deverá agora de novo assumir uma atitude ultra-radical. Porquê?

“O que funciona hoje na Europa são os discursos beligerantes [e anti-institucionais]. Os que soam hard, duro. O espaço em que se abre uma fenda tem a ver com os anos trinta. (...) Perceberam-nos como mentirosos ao dizer que éramos sociais-democratas. (...) O Podemos aspira  a mudar a sociedade, não a representá-la.” No caso de Iglesias, isto quer dizer: para sermos escutados e termos mais votos devemos radicalizar o protesto, estar dentro das instituições e, ao mesmo tempo, combatê-las na rua.

A vitória de Trump ocorreu na noite de 8 para 9 de Novembro, no 27.º aniversário da noite da queda do Muro de Berlim. A ironia da História está em que, desta vez, é um Presidente-eleito americano que se propõe construir outro “muro”, na fronteira do México.

A dúvida de Fukuyama

Annus mirabilis de 1989 incitou o então jovem Francis Fukuyama a publicar na revista National Interest um ensaio célebre, O Fim da História, mais tarde transformado em livro, em que anunciava a vitória final da democracia liberal sobre as outras ideologias. Demorou a perceber o equívoco.

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Imigração e crise dos refugiados será terreno onde terá maior impacto a consagração do populismo na América

Publicou ontem no Financial Times um longo artigo, “Os EUA contra o mundo?”, em que define a vitória de Trump como outro momento de ruptura histórica, mas em sentido inverso. “A espantosa vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton marca uma separação das águas não apenas na política americana mas para toda a ordem mundial. Parece estarmos a entrar numa nova era de populismo nacionalista, em que a ordem liberal dominante que foi construída desde os anos 1950 está sob o ataque de coléricas e enérgicas maiorias democráticas. O risco é a deriva para um mundo de competitivos e igualmente furiosos nacionalismos. Se isso acontecer marcará um momento tão importante como a queda do Muro de Berlim em 1989.”

A propósito da Europa, lembra um dito irónico do filósofo Ernest Gellner, sobre a esquerda na I Guerra Mundial: a carta enviada para uma caixa de correio chamada “classe” foi por engano parar a outra chamada “nação”. Será este o novo horizonte da Europa, a competição dos interesses nacionais?

Temos falado de Trump. Depois dele, chegará a vez de repensar a América. “A América pode sobreviver a Trump. Mas não provavelmente o Ocidente”, escreve o Financial Times. Refere-se ao efeito do “America First” e do seu beligerante isolacionismo. Mas quanto e como mudará a América na sua cultura democrática? Para lá da figura de Trump, “a personalidade mais inadequada a liderar a primeira potência do mundo”, o que significará a espantosa acumulação de poderes do actual Partido Republicano: um Presidente, a Câmara dos Representantes, o Senado e o Supremo Tribunal? O problema não é a acumulação, que não é inédita nem grave em si mesma. É que o Partido Republicano mudou, já não é o velho Grand Old Party porque foi colonizado por ultraconservadores e agora por Trump. Não está em causa a democracia americana. Estão em causa a orientação e a imagem da América.

Que novas políticas e regressões se antevêem? O nosso interesse é simples: de uma forma ou de outra, vão projectar-se na Europa.

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