A reforma inevitável dos democratas

Bernie Sanders foi visto como uma deriva esquerdista sem futuro mas com uma enorme dimensão. Tal como na Europa, o pêndulo voltou a guinar para o lado esquerdo.

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Os telefones ainda estão silenciosos na sede do Conselho Nacional Democrata em Washington. Não é fácil admitir o fim de uma era. Alguns democratas ainda argumentam que poderiam ter ganho esta eleição. Percebem-se à luz do estado de choque da madrugada de quarta-feira passada. Hillary, num dos seus mais notáveis discursos, já anunciou a saída de cena da sua geração e exortou os jovens a pegar no testemunho. As duas figuras que estiveram juntas no palco da despedida, ela e Bill, foram o rosto do Partido Democrata desde o final dos anos 80 do século passado. Tiveram de fazer, também eles, uma ruptura com o passado, tentando adaptá-lo a um novo ciclo político aberto pela revolução conservadora de Ronald Reagan. Os anos 80, com duas gigantescas vitórias de Reagan e a sua sucessão garantida por George Bush (pai), obrigavam os democratas a interrogar-se sobre o melhor caminho para regressar à Sala Oval. Os Novos Democratas de Clinton foram a resposta. Como ele próprio disse, “os arranjos sociais que foram desenvolvidos desde a Grande Depressão até à Guerra Fria, deixaram de ser adequados para ir ao encontro dos desafios do nosso tempo”. Em termos simples, o welfare não devia continuar a ser um estímulo (caro) ao desemprego e à dependência dos subsídios; a economia não poderia ser gerida contra os mercados. O resultado foi o workfare, elegendo a oportunidade de trabalho como o objectivo central, promovendo o desemprego activo e a formação. O sucesso económico de Reagan assentou na desregulação dos mercados e na ideia de que cada um tinha de tratar de si e trabalhar para ter sucesso. Clinton tinha aprendido com os “democratas de Reagan”, os trabalhadores brancos que se davam mal com o “grande governo” e a protecção de quem não se esforçava o suficiente. A lição era simples: os democratas tinham de provar que eram eficientes a gerir a economia e propor reformas que realmente resultassem. Em 1993, Bill entrava na casa Branca.

Como sempre acontece, as ideias dos Novos Democratas atravessaram o Atlântico para aterrar nas Ilhas Britânicas e rumar ao Velho Continente. Tony Blair foi o seu melhor intérprete nos anos 90 e pelas mesmas razões. O centro-esquerda europeu adaptou-se à globalização, valorizando a responsabilidade individual, mas garantindo a cada um as capacidades necessárias para enfrentar os novos desafios da economia global e da revolução digital. A crise financeira voltou a colocar tudo em causa. A globalização acabou por aumentar as desigualdades (que o centro-esquerda prometeu reduzir mas nunca conseguiu). A direita conservadora e neoliberal regressou ao poder. O centro-esquerda foi perdendo as suas bases tradicionais de apoio. A social-democracia foi-se esvaziando de conteúdo. Como escreve a Economist, a coligação dos “liberais com formação superior, os jovens e as minorias foi insuficiente e vai continuar a ser durante algum tempo”. O segundo desafio é político, resumido assim na revista britânica: o centro-esquerda “tem de decidir se combater os seus opositores significa juntar-se a eles.” É a pergunta crucial. Lá e cá.

Nos Estados Unidos, a eleição de Obama fez os democratas acreditar que não eram precisas reformas para ganhar eleições e fazer história. Mas a grande reforma, o Obamacare, terá provavelmente os dias contados. A crise económica e financeira, com a imensa factura que as classes médias tiveram de pagar, voltou a deixar tudo em aberto. A economia cresce e o desemprego é residual. Mas mudaram as expectativas das pessoas e a sua forma de olhar para a sociedade. O ódio ao outro parece pesar mais do que um salário melhor. O ódio às elites é ainda maior. Os “democratas de Reagan” transformaram-se numa imensa massa de trabalhadores brancos que viram o seu estatuto desaparecer e encontraram em Trump o porta-voz da sua revolta. Os empregos da era digital divergiram em direcções distintas: para os muito educados foram uma bênção; para os menos educados uma despromoção. A candidatura de Hillary, dada à partida como vencedora, parecia ser a prova de que os democratas não precisavam de mudar grande coisa para operarem duas “revoluções”: um negro na Casa Branca, a quem sucederia uma mulher. Acabam de cair em si. Bernie Sanders foi visto como uma deriva esquerdista sem futuro mas com uma enorme dimensão. Tal como na Europa, o pêndulo voltou a guinar para o lado esquerdo. Há coisas boas nos seus programas. Mas reabilitaram velhas opções que criam mais perigos do que soluções para aqueles que querem defender. Sanders (ou Jeremy Corbyn) defendem o mesmo proteccionismo de Trump e, como ele, querem rebobinar a globalização. Querem uma América fechada sobre si própria, contra qualquer intervenção externa que vêem como militarista. Mas a renovação dos democratas não pode deixar de levar em conta o que essas correntes representam. No reverso da medalha, está o risco de se transformarem num “populismo de esquerda” para responder ao “populismo de direita”. O desafio é enorme.

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