A memória do futuro nos Ghost Hunt

Pedro Chau e Pedro Oliveira são os Ghost Hunt, projecto a dois para sintetizadores e guitarras que, no mini-álbum de estreia, tanto resgata a memória do rock electrónico como o projecta para outros lugares.

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Carolina Sepúlveda

Lá para o final da conversa Pedro Oliveira haverá de afirmar que as pessoas já não têm tempo para ouvir música. Não foi por isso que os Ghost Hunt, o projecto dele e de Pedro Chau, optaram por uma estreia em forma de mini-álbum homónimo com cerca de trinta minutos, mas até poderia ter sido. Afinal são os dois melómanos, daqueles que devem a sua vida à música. Respiram-na. Foi com ela que cresceram.

Isso prevalece nas suas palavras. Mas está também inscrito na música. Uma sonoridade repetitiva e hipnótica, marcada por caixas-de-ritmos e sequenciadores, pela sobreposição de camadas de sintetizadores, linhas de baixo circundantes e guitarras que cortam o ar, resultando num som denso e encantatório. É uma música instrumental com muitas músicas lá dentro. Rock electrónico alemão dos anos 1970 (Can, Neu!). Pós-punk dos anos 1980 (Cabaret Voltaire, The Normal). Encontros de rock e música de dança dos anos 1990 (Stone Roses, Primal Scream). Revitalização electrorock dos anos 2000 (LCD Soundsystem). É tudo isso e nada disso.

As influências estão lá, expostas à flor da pele, mas deparamo-nos com uma abordagem tão descomplexada que percebemos de imediato que estamos perante músicos que sabem que apenas se cria a partir do caos. Os dois Ghost Hunt não são novatos. Chau é também membro dos The Parkinsons, tendo ao longo dos anos integrado vários grupos de Coimbra ou de Londres, enquanto ali permaneceu. Por sua vez Oliveira fez também parte de vários projectos como Spider ou Blarmino, antes de iniciar aventuras solitárias em torno da estética noise.

Há dois anos, numa das pausas dos The Parkinsons, vamos encontrar Chau com desejos de encetar outra aventura musical. “Qualquer coisa que conectasse a no-wave com o pós-punk numa linha experimental”, afirma. Chegou a trabalhar com o desaparecido Bruno Simões (Sean Riley & The Slowriders), mas entretanto este mudou-se para Lisboa e a coisa não avançou. “Depois apareceu ele”, lembra. “Os primeiros contactos foram pelo Facebook depois de ambos constatarmos que deixávamos ali música com semelhanças na linha do krautrock.”

Eles já se conheciam dos tempos de estudantes em Coimbra, mas na altura eram rivais. Chau andava pelo punk, rock & roll e rockabilly, seguindo a tradição Coimbrã. Oliveira pelo rock independente britânico dos anos 1990. “A partir de determinada altura desliguei-me das guitarras e comecei a arranjar sintetizadores e máquinas que fui acumulando, ao mesmo tempo que ia fazendo experiências”, reflecte Oliveira, que quando entrou novamente em contacto com Chau passava por uma fase de mudança. “Estava a separar-me depois de uma relação longa e tinha que preencher a minha vida com qualquer coisa e foi aí que apareceu isto.”

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Vera Marmelo

Por sua vez Chau depois de ter ido para Inglaterra com os Parkinsons começou a ouvir outras músicas para lá do rock. “Foi em Londres que comecei a ouvir soul ou psicadelismo e agora vejo-me a desfrutar de bandas que ele ouvia há anos e que agora oiço como se fosse a primeira vez. É como se muitos anos depois nos tivéssemos encontrado, enquanto melómanos e músicos, num estádio qualquer semelhante.” 

A partilha de referências foi essencial para chegarem a uma sonoridade híbrida onde as electrónicas coabitam com guitarras. Nada que não tivessem absorvido noutras alturas. “A grande revolução na minha vida deu-se em finais dos anos 80 e princípios dos 90 com o rock de guitarras inglês misturado com electrónica e música de dança”, confessa Oliveira, pensando em formações como Stone Roses ou Primal Scream.

Com o que têm à mão

A dimensão rítmica, o encadeamento repetitivo, o ambiente futurista psicótico e a som da guitarra acabam por modelar o som, edificando estimulantes mantras sonoras. São elementos que fazem parte da música da dupla e que tanto encontramos no rock electrónico alemão dos anos 1970 como no tecno de Detroit do final dos anos 1980, estéticas que o duo diz recriar de forma autónoma. “Esse lado repetitivo da nossa música acabou por acontecer naturalmente até pelas ferramentas com que trabalhamos”, reflecte Oliveira. “Foi o facto de operarmos com máquinas analógicas e o facto de não querermos utilizar computadores que quase nos obrigou a ter essas estruturas rítmicas muito repetitivas.”

Apesar da proclamação, a tecnologia é a última coisa que os move. O objectivo é fazer música com o que têm à mão sem preocupações com as últimas novidades. “Gosto de maquinaria e de ir descobrindo novas potencialidades, mas não quero ser o Jean-Michel Jarre”, ironiza Oliveira, dizendo que o novo instrumento que poderão introduzir na sua música é também um dos mais arcaicos: a voz. Para já a dupla faz música instrumental, mas isso poderá ser alterado no futuro próximo. Ao vivo Chau ocupa-se da voz na recriação de uma versão de Tvod, um tema dos The Normal de Daniel Miller, mas até poderão vir a incluir alguém na formação. “Claro que já pensámos na questão da voz mas não estamos obcecados com o assunto. Se aparecer alguém que nos faça sentido é uma questão a abordar no futuro sem qualquer reserva”, confessa Chau.

Para já haverá uma série de espectáculos ao vivo, sendo esta sexta-feira lançado o disco no Salão Brazil de Coimbra, seguindo-se Famalicão (12 de Novembro), Vale de Cambra (2 de Dezembro), Aveiro (3 Dezembro) e Lisboa, no Sabotage, a 7 de Dezembro. O palco tem sido aliás o habitat natural do projecto durante os últimos meses, com cerca de 30 concertos desde o início do ano, nas mais diversas partes do país, o que para quem não tem agente acaba por ser um bom número. “Até agora o nosso circuito tem sido muito roqueiro mas até nos fazia algum sentido diversificar e tocarmos em cenários mais apropriados para as músicas electrónicas, por exemplo, até porque a nossa sonoridade o permitiria.”

É verdade. A sua música tem tanto de fisicalidade extrovertida como de jornada interior, embora Chau diga que o “lado hipnótico” prevalece na forma como o público reage à sua música.  E como é para ele que está habituado com os Parkinsons a performances viscerais? “Estou numa fase em que me sinto mais próximo do sonho do que da luta”, ri-se ele, “embora nos Parkinsons seja muito importante estar concentrado, porque as canções são rápidas e difíceis de tocar. Basta beber-se um pouco mais e os reflexos podem trair-nos.” Oliveira é mais ansioso em palco. “Trabalhar com as máquinas obriga-me a uma grande concentração e a manter a cabeça fresca e às vezes tenho quase ataques de pânico”, ri-se ele, recordando alguns espectáculos em que tiveram problemas técnicos.

Quando falam da sua música percebe-se que gostam verdadeiramente do que fazem. Não espanta que olhem para a sua actividade como uma forma de partilharem a sua paixão. “Gostávamos que através dos Ghost Hunt fosse possível comunicar o quão importante é a música para nós e de que forma ela afecta as nossas vidas até porque isso se está a perder”, resume Oliveira. “Hoje existe tanta música e informação que as pessoas parecem já não ter tempo para ouvir um disco do início ao fim, dispersando-se.” Na visão deles o momento já não permite criar grandes fenómenos de identificação, apesar de existirem outras mais-valias.

“O facto de estarmos aqui significa que continua a valer a pena tudo isto e que existem novas oportunidades”, reflecte Oliveira, “mas a possibilidade de nos ligarmos a grupos como aconteceu comigo com os Smiths, Primal Scream ou Jesus & Mary Chain é cada vez mais longínqua. Para nós aquilo era tudo. Era a nossa vida. Era assim que passávamos o tempo, a ouvir a música e a olhar para as capas dos discos. Não estávamos no facebook.”

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