Um manual para explicar Donald Trump às crianças

Não simplificar o que é complicado. Descrever as especificidades da cultura e do sistema eleitoral americano. Mostrar que não é preciso subscrever os seus valores só porque foi eleito. Pedir às crianças que falem do tema. Psicólogos dão dicas sobre como explicar Trump

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Reuters/ANDREW KELLY

Donald Trump não teve problemas em defender valores e ideias misóginas, machistas, racistas e xenófobas que se andam há muito a combater. Ofendeu várias vezes a candidata democrata Hillary Clinton (“ela não tem cérebro”, foi uma das suas tiradas). Como explicar, então, que alguém que incitou ao ódio e incorpora o “que não se deve fazer nem dizer” numa democracia chegou a Presidente dos Estados Unidos da América – e como explicar que isso aconteceu porque milhões de americanos votaram nele? Pedimos a alguns psicólogos que dessem ideias para um “manual sobre como explicar Trump às crianças”.

Margarida Gaspar de Matos, psicóloga e coordenadora de estudos sobre crianças e adolescentes para a Organização Mundial de Saúde, acrescenta ainda: como é que Trump conseguiu ganhar com “o voto das pessoas que ele discrimina – as mulheres, os mais novos, os imigrantes?”  

Também coordenadora do projecto Dream Teens, uma rede de jovens consultores (entre os 11 e os 18 anos) que tem como objectivo dar voz aos jovens e incentivar a participação cívica, não acredita que a melhor forma de ajudar a compreender o que aconteceu seja a simplificação. É preciso descrever a complexidade da cultura e do sistema eleitoral americanos, e sublinhar que, pelo facto de ter “havido um revés”, isso não significa que vamos abandonar os nossos valores.

Assim, começaria por explicar algo “complicado” como o “discurso de coesão contra os outros” veiculado por Donald Trump. Depois, adoptaria uma estratégia oposta, passando uma mensagem positiva, de defesa de uma sociedade pluralista, diversa, com equidade e igualdade de direitos. Explicar a diferenciação entre o que são organizações partidárias e as eleições e o que são as políticas públicas e a cidadania activa que “tentamos incentivar” seria o passo seguinte. “Depois dizia que há milhões de americanos que votaram vencidos e estão muito mais deprimidos do que nós, porque têm que lá viver. Devemos apelar à empatia das nossas crianças.”

E conclui: “Paradoxalmente é nestas alturas dos reveses em que os nossos valores ficam abalados que devemos juntar-nos, e aos nossos filhos, à volta dos valores democráticos.”   

Respeitar democracia não é subscrever ideias de eleitos

O facto de um político ser eleito, e de termos que respeitar a democracia, continua o pediatra Mário Cordeiro, não implica “abdicarmos de defender aquilo em que acreditamos e que constituem valores e avanços civilizacionais”. Autor de vários livros, como Educar com Amor (Esfera dos Livros), diz que devemos sublinhar que o voto popular não “legitima” necessariamente “o que Trump pensa”. “Se achamos que devemos acolher refugiados, defender a igualdade de género e ser contra a xenofobia e o racismo, mais uma razão para ser activo na defesa das ideias e não titubear ‘porque toda a gente acha isto ou aquilo’."

Lições a tirar? “Será uma oportunidade para ensinar que o facilitismo do protesto, levando as diatribes e a superficialidade das redes sociais para coisas tão profundas como as escolhas políticas, encerra um enorme perigo do qual as pessoas depois rapidamente se arrependem, quando já é tarde de mais” – o "Brexit" e esta eleição são exemplo, acredita.

Para a psicóloga clínica Isabel Leal a forma como vamos explicar depende da idade das crianças. Se já forem mais velhas, deve-se começar por lhes perguntar como é que elas próprias explicariam a vitória de Trump.

Ainda de manhã, Isabel Leal lembrou-se – “com as devidas proporções” – do livro Escuta, Zé Ninguém!, de Wilhelm Reich, em que a certa altura se interroga: “Como é que o Holocausto aconteceu?” Porque “uma coisa são os valores que queremos ensinar às crianças, outra é o mundo que existe à nossa volta – e no nosso mundo vale mais ser giro e popular mesmo não sabendo fazer nada”.

Cultura do espectáculo

A vitória de Trump pode ter sido produto de uma reacção contra o sistema. Mas ele não defende ideias, “está a dar espectáculo”, diz Isabel Leal. “No fundo perguntar como o explicar às crianças é perguntar como é que as pessoas se conseguem relacionar com as que são contra tudo o que são os valores que se devem ter”, comenta. Ora podemos dizer-lhes que este não é um fenómeno de agora, acontece assim porque “há um patamar de insatisfação, de descontentamento, de denúncia” a que Trump responde – e foi aquilo que o eleitorado valorizou, "desvalorizando o seu politicamente incorrecto".  

Estamos a falar de uma figura que diz barbaridades que as “pessoas mais básicas, comuns” também dizem – isso podemos explicar aos mais novos. “Há uma cultura do espectáculo que premeia o facto de as pessoas serem desbocadas, exporem-se, serem muito sinceras, serem mais elas – e para os americanos é como se ele fosse mais credível por dizer essas barbaridades do que a imagem ‘acabadinha’ de Hillary Clinton, muito preparada, culta, conhecedora”. Nesta competição “não importam os conteúdos, é muito mais o mundo da forma”, conclui. “Mas vivemos num mundo da forma” – por isso os “Trump” são vencedores.

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