As raparigas não choram

Justo, simples, credível e introvertido: Califórnia comove-nos com as suas personagens.

<i>Califórnia</i> : um tu cá tu lá com a intimidade na adolescência
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Califórnia : um tu cá tu lá com a intimidade na adolescência
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De filmes sobre a adolescência está o mundo cheio, e no fundo todos se parecem uns com os outros, talvez porque os adolescentes se pareçam sempre uns com os outros, vivam em que parte do mundo em que vivam (pelo menos, os que vivem em partes do mundo onde um adolescente tenha a sorte de poder ser um adolescente igual aos outros). O que faz a diferença, então, num “género” tão repisado e carregado de estereótipos? Uma impressão de genuidade, talvez. Que é o que imediatamente se sente perante este Califórnia, longa-metragem de estreia da brasileira Marina Person, ambientada na São Paulo dos anos 80 (e bastam uns minutos para se adivinhar que Marina nasceu à roda de 1970, o que depois se vai confirmar: nasceu em 1969). É a São Paulo da classe média branca, a mesma de inúmeras telenovelas, como a família da protagonista (a que nem falta a figura da cozinheira vinda do campo) podia ser uma família de telenovela – mas devolver um pouco de verdade à estereotipação das novelas também é um dado trabalhado por Marina Person, basta ver como, em termos de representação, estamos nos antípodas daquele falso naturalismo, super-fabricado, típico da telenovela, trocado por um estilo menos fluido, quase mais hesitante, particularmente verdadeiro no caso dos muitos actores e actrizes adolescentes, todos duma espontaneidade ainda livre de vícios “profissionais”.

Genuinidade, ainda, na forma como Califórnia, mais autobiografia menos autobiografia, se constitui numa espécie de pequeno museu da adolescência em meados dos anos 80. Logo ao princípio (enquanto os Five Years de Bowie tomam conta da banda sonora), a câmara desenha uma panorâmica pelo quarto da protagonista, e das capas de discos, aos posters de filmes, aos bonecos, às fotos coladas na parede com o Harrison Ford dos Salteadores ou do Blade Runner, esse “museu” materializa-se e embebe o filme, que em boa parte não deixará de se desenrolar circunscrito por ele e pelas “marcas” do tempo – daquela vaga marginalidade da pop/rock anglo-saxónica (os Cure, os New Order, etc), num tempo em que se ia de facto a lojas de discos e a música se “traficava” de mão em mão através de “cassettes”, à sombra representada pela personagem do tio da protagonista, que está morrer duma doença nunca nomeada mas que, hoje, toda a gente sabe qual é (o que permite datar a acção do filme: antes da morte de Rock Hudson no final de 1985).

História de uma miúda a aprender a conviver com os primeiros amores, com a sexualidade, com os indícios de uma idade adulta prestes a chegar (é pela primeira menstruação que o filme começa), Califórnia faz esse retrato com uma sensibilidade ao mesmo tempo muito discreta e muito particular, e um tu cá tu lá com a intimidade feminina que muito provavelmente um realizador homem não conseguiria filmar: é ver, por exemplo, a cena, muito divertida, muito doce, em que a protagonista e as amigas, num misto de excitação e embaraço, lêem as instruções para a colocação de um tampão. Em todo o caso, a dimensão sonhadora prevalece, com a Califórnia a ter o mesmo papel que, no John From de João Nicolau (de que Califórnia podia ser um primo paulista), era desempenhado pela Melanésia. A força mental de Estela (assim se chama a protagonista) não é suficente para transformar São Paulo na Califórnia, e pelo contrário a cidade permanece fechada, enevoada e outonal – o refúgio na magia vem mais da música, é ela que cobre e “modifica” a paisagem. Mesmo que seja preciso um gesto de rasgo, como a corrida final da miúda, algures entre Carax e Mur Oti (o travelling final de Cielo Negro) em versão simples e quase irrisória. Mas nem precisava de convocar tais memórias excessivamente “cinéfilas”: basta a sua justeza, simples, credível e “introvertida” (como se nunca saíssemos daquela panorâmica do princípio), para que California seja capaz de nos comover com as suas personagens.

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