Sapinho e Weerasethakul nas caldeiras

Em Liquid Skin a proposta de Joaquim Sapinho é mais intensa e intemporal que a de Apichatpong Weerasethakul.

No silêncio – só interrompido pelos sons das caldeiras – o espectador deve encontrar e ver. Ver o que aparece sobre o ferro, entre os tubos e outras estruturas da engenharia: <i>Liquid Skin</i>
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No silêncio – só interrompido pelos sons das caldeiras – o espectador deve encontrar e ver. Ver o que aparece sobre o ferro, entre os tubos e outras estruturas da engenharia: Liquid Skin
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No silêncio – só interrompido pelos sons das caldeiras – o espectador deve encontrar e ver. Ver o que aparece sobre o ferro, entre os tubos e outras estruturas da engenharia: Liquid Skin

Cinema, aparição, aparecimento, desaparecimento. Chamas, cores, memórias, sombras. A instalação que reúne Joaquim Sapinho e Apichatpong Weerasethakul na Casa das Caldeiras do Museu da Electricidade, num projecto comissariado por Alexandre Melo, anima-se com os significados que aquelas palavras podem ter. Trata-se de uma exposição que conduz o espectador, mas sem apontar os lugares onde as obras se escondem. No silêncio – só interrompido pelos sons das caldeiras – ele deve encontrar e ver. Ver o que aparece sobre o ferro, entre os tubos e outras estruturas da engenharia. E o que aparece são imagens, imagens projectadas, como as que Joaquim Sapinho trouxe de Diários Suspensos, filme em que tem vindo a revisitar o passado da sua família.

À entrada da sala, um corredor leva-nos ao seguinte, do qual saem várias passagens. É nestas que as imagens se acendem. Há um jovem em convalescença e mimado pelas irmãs, uma criança recém-nascida nos braços da mãe, uma mulher idosa que segura uma criança, um jovem que nada contra as ondas. Fazem parte todos da família do cineasta mas não são retratos de uma família. Chamemos-lhe antes aparições do cuidar, do velar, que tremeluzem sobre as superfícies irregulares, ora macia, ora ásperas, das caldeiras. Usar uma construção técnica como tela para a exibição de imagens em movimento poderia ter redundado num equívoco, mas a meia-luz do espaço industrial não apenas as ressuscita como lhes oferece uma outra “natureza”: podiam ser iluminuras, frescos, frisos. A assumida relação de Sapinho com a pintura resplandece efémera nestas manifestações da luz sobre o ferro, as cores, as sombras.

Na passagem seguinte, o nascimento cede lugar à vida, esse intervalo que medeia o aparecimento e o desaparecimento no mundo. Os vivos passam a ter a companhia dos mortos. De vários pontos da estrutura, assomam outros clarões: o casamento, a doença, o luto. Mas, ressalte-se, para ver o espectador tem que se agachar, espreitar, enfiar a cabeça, olhar para cima, para baixo. Aceitar a curiosidade. Há obstáculos, coisas que impedem uma vista perfeita, que interferem na imagem ao ponto de fazerem parte dela. Por momentos, o que se vê não está a ser projectado pelos aparelhos, mas pelas próprias caldeiras, pelas superfícies metálicas, como se as imagens emergissem do ferro.

Em Liquid Skin, as imagens só nos interpelam quando avançamos, inclusivamente as que estão fixas, como as fotografias que recontam uma vida individual. Podem até passar despercebidas, pelo que o repto de Sapinho é o de que olhemos para que elas nos possam olhar de volta. E há rostos nesta exposição que parecem ter essa faculdade. Aparecem, brilham e desaparecem como o fogo depois feito em cinzas. A sensação de que estamos a entrar numa esfera privada é moderada pelo silêncio e pela ausência de demasiada informação. O recolhimento solicitado pelas imagens nunca é grandiloquente, mas estranhamente familiar. Há pessoas que chegaram e outras que partiram num mundo cuja estabilidade e permanência é garantida pelo próprio Joaquim Sapinho, na sua condição de artista. Na entrada seguinte, é exactamente isso o que ele nos parece dizer. Agora as projecções remetem todas para filmes seus, deixando as histórias individuais para trás, na direcção da reificação que a arte garante. Há excertos de A Mulher Polícia (2003), de Diários da Bósnia (2005), de um filme inédito. Dizer que são meros ecos do seu trabalho não é suficiente. Assinalam outra coisa: a dedicação do cineasta à sua arte, a interrupção que ele realizou no recorrente ciclo da vida, para fazer o seu trabalho. O que vemos ali, são os vestígios desse fazer que se acaba, se finaliza nos seus filmes, as suas obras.

Depois desse redentora saída, a instalação vídeo Invisibility, de Apichatpong Weerasethakul, surge supérflua. Numa das paredes, vêem-se cenas que podia ser extensões frágeis de Cemitério de Esplendor e de Fever Room. Regressam as sombras das personagens, a alusão aos sonhos, mas a mudança de escalas traz à obra um efeito que tenda ser decorativo, o que já não acontece com outra peça do cineasta tailandês, Fireworks (Fans), onde o espectador assiste ao movimento de uma bola de fogo que afasta ao mesmo tempo que atiça o calor. Esse fogo não se apaga e convidará o espectador a voltar aos nascimentos, aos começos que Joaquim Sapinho deixou nas suas imagens.

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