Em Portugal, os olhos dos políticos vão estar postos nas américas da América
Políticos dos vários partidos contam como vão acompanhar as eleições norte-americanas. Histórias de pouco sono, de noites em claro e de viagens pela lendária Route 66.
Não foi assim há tantos anos que os bloquistas José Manuel Pureza, Francisco Louçã e João Semedo se meteram num carro e percorreram, durante cerca de 20 dias, a lendária Route 66. Já eram todos bem crescidos, as feridas do 11 de Setembro já tinham marcado o mundo, era Agosto de 2010 e eles decidiram conhecer a América, de costa a costa. Ou as américas, porque numa estrada só fazem-se muitas viagens. “A Route 66 é um mito do nosso imaginário que nos diz muito sobre aquilo que é a realidade norte-americana, permite-nos contactar com realidades tão diversas como o cosmopolitismo de Chicago e com a chamada América profunda do Midwest”, ilustra José Manuel Pureza.
Não é o único político que tem memórias de várias américas dentro da mesma América. O socialista João Galamba também se lembra da primeira vez que pisou solo dos Estados Unidos. Estava no início da adolescência quando foi um mês para um campo de férias, numa quinta no Dakota do Sul: “Foi o primeiro contacto com a América profunda, com uma América diferente daquela que um miúdo de 13 anos tinha dos filmes e da televisão.”
Muito depois disso, em Janeiro de 2002, e já depois dos ataques às Torres Gémeas, o porta-voz do PS recorda-se de ter ido quatro meses para uma consultora em Nova Iorque e de um polícia lhe ter pedido a identificação na rua: “Foi muito agressivo, disse-me ‘you fucking imigrant’.” Galamba procura perceber aquela “hostilidade” com o facto de o 11 de Setembro ter posto o “nervosismo à flor da pele”, mas ainda assim estranhou aquela atitude “num país como os Estados Unidos, conhecido pela sua abertura e por ser um país de imigrantes”. Não são só memórias desfocadas no tempo: “Se calhar, esta agressividade e raiva têm crescido ao longo dos anos. E Donald Trump [o candidato republicano] soube aproveitar isso como ninguém”, acrescenta.
Não são só memórias desfocadas no tempo. O centrista João Rebelo lembra-se, por exemplo, de ter conhecido Marco Rubio, ainda não era senador da Florida, e de, já em 2010, uma professora universitária de Miami lhe ter dito: “Ainda vai ser o próximo Presidente dos Estados Unidos.” Marco Rubio acabou por desistir da corrida, mas João Rebelo ainda não perdeu a esperança de o ver chegar à Casa Branca.
“Sinto-me próximo do Partido Republicano em termos de ideologia, mas não me revejo no tom e no discurso de Trump. Mas também não votaria em Hillary Clinton. Votaria em branco”, esclarece João Rebelo que já deu aulas de Relações Internacionais e História das Ideias Políticas no ensino superior. O deputado do CDS vai acompanhar, madrugada fora, a noite eleitoral. Vai estar em casa de televisão e computador ligados. Não importa se vai fazer directa, se no dia seguinte vai sentir no corpo o cansaço. Gosta de estar a ver a História a ser feita.
As eleições do desassossego
Quase todos estes políticos vão estar de olhos bem abertos nesta noite. A social-democrata e professora de Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Mónica Ferro, estará a torcer por Hillary Clinton. Destaca o facto de ser “uma mulher com mais de 30 anos de serviço público”, de ter uma “agenda dos direitos das mulheres”, de ser “a mais bem preparada” pelos cargos que já desempenhou. O contrário das declarações “misóginas, discriminatórias, e racistas” do magnata multimilionário. Mónica Ferro costuma brincar e dizer que gostava de votar nas eleições nos EUA: “São tão determinantes para a política mundial no seu todo”.
Já o professor de Coimbra José Manuel Pureza não deverá acompanhar tudo até ao fim. Mas vai dormir mais desassossegado, às voltas na cama para que Trump perca. Não se pode pedir que Pureza diga que está a torcer por Clinton, porque o seu candidato era Bernie Sanders, mas Bernie Sanders agora apoia Clinton... “Não sou daqueles que acha que é tudo igual. São diferentes, porque pela primeira vez aparece um candidato com perfil protofascista”.
O que é notório no discurso do vice-presidente da Assembleia da República é o seu total afastamento de tudo o que Trump simboliza: “Creio que representa uma América receosa de qualquer realidade cosmopolita, multicultural, é um candidato profundamente reaccionário, com um discurso de agressividade à flor da pele, contra o confronto dos Estados Unidos com o diferente. O ícone disso é o muro [que Trump quer erguer na fronteira com o México]. Num país que se construiu com imigrantes é muito revelador de que se trata da América que se quer entrincheirar, fechar”, diz Pureza que, durante aquela viagem pela Route 66, se lembrou muitas vezes do livro As Vinhas da Ira, de Steinbeck, passado durante a Grande Depressão.
Caso Clinton vença, Pureza até poderá acordar aliviado (ainda que sem ilusões quanto à candidata democrata), mas terá uma pergunta na cabeça: “O que vai Clinton fazer com a parte da América que preferia Trump? Essa América não desaparece com a eventual derrota de Trump. Vai ceder ou não? O que vai fazer à América dos direitos civis, do activismo?” O que o bloquista quer saber é como vai a candidata relacionar-se com as américas que viu quando viajou de costa a costa: a América “cosmopolita e lutadora pelos direitos” e a de Trump, “obscurantista, racista e fechada”.
João Galamba (que também preferia Bernie Sanders, mas agora votaria “convictamente” Clinton) partilha as mesmas palavras duras para falar de Trump. O mesmo desassossego na noite eleitoral que vai acompanhar em casa: “Espero sempre que os Estados Unidos, sendo a nação que são, sejam governados por líderes respeitáveis. Não me parece ser manifestamente o caso se Trump ganhar. Ter um rufia à frente dos Estados Unidos não me sossega, seguramente.”
Já Pedro Guerreiro, do PCP, enviou um email ao PÚBLICO no qual sublinha que “embora não seja indiferente o resultado das eleições presidenciais, as candidaturas de Clinton e Trump personificam o que de mais reaccionário e negativo caracteriza seja o Partido Democrata, seja o Republicano”. O membro do secretariado do Comité Central escreve ainda que “Trump utiliza um discurso xenóbofo e populista, falsamente anti-sistema” e Clinton reúne “os interesses do capital financeiro e do complexo militar-industrial”.
Também o deputado do PAN, André Silva, não se revê em nenhum dos dois candidatos: “Nestas eleições há uma escolha entre o péssimo e o aberrante.” Trump, escreve, não tem programa eleitoral, opera numa “plataforma idêntica à de um reality show”, promove “o racismo e o sexismo”. E, embora também teça críticas a Clinton, admite que será “o menor dos males.