Identificado o árabe anónimo que o anti-herói de Camus mata em O Estrangeiro

Investigadora americana crê ter encontrado o rasto do homem que inspirou a personagem de Camus. Kaddour Touil cumpriu pena por violação, casou com uma enfermeira francesa e teve um bar chamado Copa Cabana.

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Numa cena central de O Estrangeiro (1942), o mais conhecido romance de Albert Camus (1913-1960), o narrador-protagonista, Mersault, e um amigo envolvem-se numa luta de facas com um árabe. O cenário é uma praia, à qual o anti-herói de Camus regressa para, meio delirante pelo efeito do calor e da intensa luz solar, assassinar a tiro o árabe com quem antes se confrontara. Até hoje, a vítima de Mersault não tinha nome, era apenas “o árabe”, mas uma professora de Literatura Francesa da universidade norte-americana de Yale, Alice Kaplan, acredita ter descoberto o rasto do homem real que terá inspirado a personagem de Camus: chamava-se Kaddour Touil e o seu trajecto biográfico coincide em alguns aspectos com o do escritor: também ele ficou dispensado do serviço militar por doença e, tal como Camus, “o árabe” teve de deixar a Argélia para receber tratamento à tuberculose em clínicas francesas.

A história está contada no livro Looking for The Stranger: Albert Camus and the Life of a Literary Classic, lançado este ano na Chicago University Press, e já traduzido em França. No seu projecto de escrever uma obra sobre O Estrangeiro, uma das ambições de Kaplan, especialista em autores como Camus, Proust ou Céline, era conseguir identificar o “árabe”, cuja função no romance tem sido alvo das mais diversas teses e especulações. O próprio facto de não ser nomeado no livro foi visto como um símbolo da indiferença que os colonialistas franceses votavam aos árabes. E a personagem chegou mesmo a ser revisitada por um romancista argelino francófono, Kamel Daoud, no premiado Mersault, Contra-investigação, publicado em Portugal pela Teodolito. 

A pista que permitiu à investigadora descobrir um rasto tão apagado – O Estrangeiro foi publicado há mais de 70 anos – repousava numa velha edição do jornal diário Alger Républicain, onde Camus então colaborava. No número de 31 de Julho de 1939 – poucos meses antes de o jornal, assumidamente de esquerda, ser suspenso pelas autoridades –, uma pequena notícia dava conta de uma altercação, na praia de Bouisseville, entre dois irmãos franceses de origem judaica e um árabe. Uma rixa demasiado parecida com a que Camus descreve em O Estrangeiro, e que acontecera quando este estava a escrever o livro, que terá terminado, segundo Kaplan, em Maio de 1940.  

A americana não largou a pista e acabou por descobrir um irmão e uma irmã do árabe citado na notícia do Alger Républicain, Kaddour Touil, que vivem ainda em Aïn El Turk, uma cidade costeira próxima de Orã. Os seus testemunhos ajudaram-na a reconstituir o trajecto do “árabe” de Camus.

Pouco depois da briga na praia de Bouisseville, Kaddour não foi assassinado, como o seu alter-ego ficcional, mas foi condenado a uma longa pena de prisão pela alegada violação de uma rapariga marroquina. Os seus irmãos explicaram a Kaplan que não têm a certeza se a acusação foi mesmo de violação, ou de manter relações sexuais consensuais com uma rapariga virgem, o que também constituiria crime. O certo é que Kaddour cumpriu pena, tendo contraído a tuberculose na prisão. Mas sobreviveu, ao contrário de um seu irmão mais novo, que terá morrido de tifo na cadeia, onde foi encarcerado por ter assassinado um homem por uma questão de terras, apunhalando-o pelas costas no meio da rua.

Alice Kaplan não conseguiu encontrar ninguém que se lembrasse de ter testemunhado a luta na praia, mas argumenta que a prisão de Kaddour e o crime do seu irmão, dois acontecimentos dramáticos, são mais do que suficientes para apagar das memórias um incidente afinal quase corriqueiro, que podia ter dado para o torto, mas no qual não morreu ninguém.

Quando saiu da prisão, Kaddour Touil conseguiu deixar o país para se tratar numa clínica francesa em Aix-les-Bains, não muito longe de Chambon-sur-Lignon, onde teve lugar a convalescença do próprio Camus. O homem que inspirou o “árabe” de O Estrangeiro casou-se com a enfermeira francesa que o tratou e, em 1954, regressou com ela a Aïn El Turk, onde se tornou empresário e adquiriu um bar chamado Copa Cabana.

No final do seu livro, Alice Kaplan escreve: “Há qualquer coisa de muito gratificante (…) em libertar este homem bem real que foi Kaddour do romance de Camus e da sua carga simbólica. O árabe presente naquela praia em 1939 tinha um nome. Falava quatro línguas e tinha uma namorada francesa. Andava com uma faca e não hesitava em servir-se dela. Era tuberculoso, como Camus, e como ele estava dispensado do serviço militar”. E a autora termina com uma aproximação imaginária do criador de Mersault e do árabe que foi literariamente transfigurado em sua vítima: “Os dois homens nunca se cruzaram em nenhum hospital francês – separava-os o Reno –, e as datas de convalescença não coincidem inteiramente. Mas podiam ter coincidido. A minha busca de O Estrangeiro termina com esta reconciliação imaginária: Kaddour Touil e Albert Camus, cada um na sua clínica de montanha, ambos em vias de se curarem."

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