Visita guiada a Jenny

Do amor ao sangue menstrual, Jenny aborda all things femininas.

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Ela investiga todas as manifestações do feminino

Não é propriamente comum que numa canção pop se ouça, a dada altura: “In the doctor’s office my speculum pulls me open (...) Regulating my aperture, vagine savant/Some people find it painful/ But all I feel is connected”, e mais à frente “Don’t be afraid/ It’s only blood”. Isto são citações de Period piece, o quarto tema de Blood Bitch, o mais recente álbum de Jenny Hval – e este é o universo de uma artista que está longe de ser apenas uma música, se partirmos do princípio que uma música se centra sobretudo no som.

Num disco de Jenny Hval as palavras importam, e ela não usa palavras como “speculum” ou “vagina” de forma gratuita, mesmo que voluntária ou involuntariamente crie reacções no ouvinte (não raro de incómodo e convém começarmos a admitir isto). Hval não está interessada no carnal de per si, pelo menos não no sentido sexual-leviano do termo; ela investiga todas as manifestações do feminino, seja um orgasmo ou o sangue menstrual (sendo que por duas vezes e em canções diferentes ela usa a expressão “my combined failures” após alusões à menstruação). Não se trata de provocar por provocar – Hval não é alheia à paixão, por exemplo e na deliciosa Secret touch, com uma simples batida e sintetizadores etéreos por trás, canta, sobre o desejo: “Does anyone have any language for it? “Because we have no language to express that it was both/ Ravishing, ravishing/ Destructive, and most of all, most of all/ Absolutely necessary”. A começar no título e a acabar na linguagem sonora, Blood Bitch é um disco incomum: a música parece estar ao serviço das palavras e se a textura do som importa é porque este serve como palco para as palavras – que, no fundo, são o que estão em causa. Não leiam nisto uma diminuição da componente musical – simplesmente aqui há uma grande inteligência na gestão do som.

Logo na primeira faixa, Conceptual romance, se estabelecem as premissas: a “canção” funciona enquanto cenário, o que significa que Blood Bitch é possuído por uma qualidade cinemática. Por norma as teclas são etéreas e Hval cicia, canta ou rosna; na belíssima Conceptual romance a voz adocicada serpenteia com elegância o beat, as teclas, uma flauta e coros. Esta tepidez funciona na perfeição, porque concede espaço à voz – e os arranjos, como o trompete na óptima Female Vampire ou o som ameaçador no início da mesma canção, existem para preencher pequenos espaços, definir melhor uma atmosfera. Mas Blood Bitch está longe de ser “doce”; na realidade, e apesar da classe com que Hval consegue cantar ou declamar as palavras mais provocadoras (ou utensílios médicos), o álbum consegue provocar com facilidade desconforto (e nesse sentido é admirável o que aqui se faz musicalmente: as repetições de Female Vampira, por exemplo, provocam uma certa ansiedade, sem nunca haver ruído ou o volume subir). O diálogo de género está longe de estar terminado e Blood Bitch soa, por vezes, a uma visita guiada ao interior de Hval, tanto no sentido mais carnal como mais visceral ou existencial do termo. Digamos que estamos por dentro de uma auto-inquirição e que por vezes não é fácil lidar com tanta exposição - simpaticamente, Hval criou boa música para acompanhar este percurso. Não há muita gente a fazer o que Hval faz. Sendo que Hval é extraordinária a fazê-lo.

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