O desejo maior do que o medo nas canções de Rita

Com o propósito claro de recuperar as canções clássicas do seu início a solo, Rita Redshoes faz de Her um álbum belíssimo em que assume pela primeira vez o português. As mulheres povoam todo um disco produzido e tocado com gente que conhecemos ao lado de Nick Cave, Tom Waits ou Tindersticks.

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Ao fim de nove anos de carreira a solo percebeu que voltar ao ponto de partida não era o mesmo do que voltar para casa dos pais depois de fracassar numa vida AUGUSTO BRÁZIO

Rita Redshoes andou a fugir de si mesma. Tentando outra vez: Rita Redshoes andou a procurar-se noutros lugares. Talvez desconfiada de si, possivelmente empenhada em ser também outras coisas, quiçá tentando convencer-se que a sua natureza poderia ser traída e, no meio desse adultério procurado e desejado, descobrir que havia outros encantos a serem destapados. E terá havido uns quantos desses encantos, umas tantas revelações a justificar o caminho. Mas ao fim de nove anos de carreira a solo percebeu que voltar ao ponto de partida não era reincidir fatalmente na inocência de então nem assumir qualquer falhanço nas viagens que tinha empreendido. Não era o mesmo do que voltar para casa dos pais depois de fracassar numa vida independente.

“Aterrorizava-me um pouco a ideia de me repetir, acho que terá que ver com a própria idade e a energia que se tem; hoje em dia já me estou a borrifar para isso”, conclui agora que se prepara para lançar o quarto álbum, Her. Ri-se do cliché que invoca – “uma pessoa só se encontra perdendo-se um bocado” – para reflectir sobre os caminhos mais folk que chegou a trilhar, numa possível tentativa de contrariar o seu instinto musical. Desta vez, foi percebendo que a sua vontade de partir para um novo disco tinha o sentido único da reconciliação total com a sua primeira natureza, ligada a uma pop clássica, daquela que faz pensar em Nancy Sinatra calçando as canções de Lee Hazlewood. Esta é a mulher que na hora de arranjar nome para o projecto em que se autonomizava e assumia as suas canções se virou para O Feiticeiro de Oz. Claro que David Bowie também tinha o seu quinhão de culpa nos sapatos vermelhos graças a Let’s dance, mas era, na verdade, a pele de rapariga sonhadora, presa a um tempo passado que não viveu e encantada com um mundo fora do mundo que a definia.

Her é, por isso, em primeiro lugar, resultado da consciência de que estava na hora de regressar à casa de partida, ao universo que dera forma a Golden Era (2008), agora explorado com menos ingenuidade e uma assunção plena e sem culpas dessa natureza. “É esta a minha essência, é isto que me sai naturalmente e cada vez mais percebo que a minha forma de estar e aquilo que me arrepia tem que ver com esse universo”, diz. “Resultou também de conversas que tive durante estes anos com pessoas que trabalham comigo e eu própria comecei a perguntar-me porque me havia de negar isto. Mas também foi preciso algum distanciamento para perceber que era isto que queria fazer, depois de ter experimentado outras coisas.”

De certa forma, pode dizer-se que Rita Redshoes deixou de andar às voltas a tentar manter-se apenas na órbita deste classicismo que lhe mexe com os sentidos e foi directa a esse núcleo, banhou-se nessas águas e lambuzou-se num banquete que preparou para agradar a si mesma. Aconteceu que, de facto – e nem sempre assim acontece –, o disco que a cabeça lhe ditava e o estômago lhe dizia ser o rumo certo acabou mesmo por revelar-se nas canções que foi deitando cá para fora, sem um real desvio entre a vontade e a prática.

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Life is Huge, primeiro single do novo álbum, tem videoclip realizado por Marco Martins
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Her arranca com um fade in de cordas, sinal claro do que está para vir. Ao escolher Victor van Vugt para produtor, Rita tinha em mente, mais do que qualquer outro disco, Murder Ballads, de Nick Cave com os Bad Seeds, percebendo que este era o homem certo para a ajudar a montar um conjunto de canções assente na sua voz, no seu piano e na oportunidade de contar com um quarteto de cordas. Tudo o que viesse a mais só poderia ter um lugar assegurado caso reforçasse o que queria dizer. O papel das cordas, aliás, tornou-se tão central em Her que, depois de uma primeira sessão de trabalho em Lisboa, em que Rita e Victor gizaram o plano geral para a gravação dos 13 temas do álbum, o produtor seguiu para Berlim com a missão de começar a desenhar a partir daí o esqueleto dos temas. “Depois é que íamos ver o espaço que as cordas davam para o resto dos instrumentos”, diz a cantora.

As cordas no centro

Na semana em que chegou a Berlim, ansiosa por ouvir Her a tomar forma, Rita enfiar-se-ia num covil de homens mais velhos, altamente experimentados, cuja missão era dotar de carne e nervo as suas canções ancoradas num universo feminino (como sempre foi) e feminista (como nunca o tinha sido). Falar de homens experimentados significa que, para além de Victor van Vugt, a cantora estaria a fixar Her ao lado de uma secção rítmica de sonho com o baterista Earl Harvin (actualmente nos Tindersticks) e o soberbo baixista Greg Cohen (membro dos obrigatórios Masada de John Zorn e apanhável em palcos e discos de Tom Waits ou Laurie Anderson), mas também Knox Chandler, guitarrista e violoncelista com um currículo abrilhantado pelo trabalho com Depeche Mode, R.E.M., Golden Palominos ou Siouxsie and the Banshees, chamado a assumir as subtis guitarras e os arranjos de cordas.

No meio de tubarões, Rita ainda a encolher-se nos primeiros minutos a pensar “sou só uma miúda que veio ali de Portugal”, a primeira semana foi passada a ouvir o trabalho que Knox Chandler tinha adiantado nos arranjos de cordas. As coordenadas passadas previamente ao músico pediam uma “sonoridade clássica mas arrojada”. “Tinha dito ao Knox que não queria arranjos de cordas fechados ou que respeitassem totalmente a harmonia da música – e foi esse o caminho para as canções”, explica. Quando o produtor lhe passou os nomes dos músicos que a acompanhariam, Rita demorou-se a olhar para os currículos e assomaram as dúvidas de como comunicar com gente habituada a partilhar o estúdio com nomes que figuram entre os seus heróis pessoais. “Mas o primeiro dia com o Knox foi super estranho porque ele estava muito nervoso a mostrar-me os arranjos”, recorda. “Essa humildade quebrou logo o gelo. Ao segundo ou terceiro dia já estava a falar dos anos de loucura e dos divórcios dele.”

A surpresa para Rita Redshoes foi encontrar em Chandler, Cohen e Harvin um profissionalismo que não implicava frieza. Em vez de se comportarem como tarefeiros rigorosos, a emprestar o seu muito requisitado talento a mais um disco para adicionar às larguíssimas discografias e a pensar no saldo da conta bancária no final do mês, Rita sentiu-lhes uma entrega sistemática, uma preocupação em conseguir o melhor resultado possível para cada tema, pesando sempre as suas participações e buscando a aprovação da cantora portuguesa para cada opção mínima. Previamente informados por uma playlist de referências no Spotify que reunia temas de Nina Simone, Françoise Hardy ou Scott Walker, entre outros, e por uma troca de emails que ajudava a mapear o disco que Rita tinha imaginado, estes gigantes que afinal tinham tamanho humano respeitavam-na e tentavam, acima de tudo, entrar e habitar o seu universo.

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“Normalmente, antes de irmos para a sala gravar, ouvíamos a minhas maqueta duas ou três vezes”, relata. “Eles tinham as letras à frente e parecia que estávamos numa igreja a ler os salmos [risos]. Às tantas olhava à minha volta e aquilo era quase sinistro, todos em silêncio a ouvir. Eram momentos solenes, muito bonitos. No fim, quando pediam para voltar a ouvir, percebia que estavam a fazer música nas cabeças deles antes de irem tocar.” Depois discutiam cada canção, ela traduzia-lhes as canções em português, trocavam impressões sobre as letras, afinavam questões práticas como a necessidade de acelerar ou desacelerar o tempo, e Cohen fazia observações sempre “meio transcendentes” – “ele é obcecado por cristais e pedras, e arranjava umas analogias com as letras, a música e os sons”. No final, quando avançavam para a gravação (Rita, Greg e Earl, sobre as maquetas acrescentadas já de uns “manhosos midi com os rascunhos das cordas”), era como se ela os levasse a todos na voz, como se cada um deles cantasse consigo cada palavra que tinha escrito.

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Essa estreia relação entre os três – voz e piano, baixo e bateria – é talvez o elemento mais surpreendente de Her. Há uma coesão neste trio que, em momentos como Hell, I’m in love with you ou In a while faz esquecer que o álbum foi construído elegendo as cordas como o seu centro nevrálgico. São os três que impulsionam (ok, as cordas também ajudam) uma inédita sonoridade parente dos Tindersticks na música de Rita Redshoes ou que garantem em todo o disco um viço que não deixa as cordas soarem a uma coisa etérea e as livra de qualquer encontro inesperado com a monotonia. O lado carnal está aqui, quase como transcriação musical do verso “o desejo é maior do que o medo” que baloiça no refrão de Mulher. Chega mesmo a ser tentador imaginar um par de temas despido das cordas, acreditando que nem por um segundo isso equivaleria a efectiva nudez. “Criou-se ali uma química”, reconhece. “E arrepiei-me muitas vezes a gravar. O que não é fácil de acontecer. Acho que isso passa para a música – isso é música, aliás.”

E depois há o “piano temperamental”, “a diva do disco”, como Rita Redshoes lhe chama. Depois de experimentar todos os pianos do estúdio berlinense, escolheu o Bösendorfer do século XIX que, “coitadinho, nunca tinha saído do lugar”, e estava abandonado à entrada como peça de decoração. Não foi teimosia, garante. Mas foi ali que encontrou o piano com a “personalidade certa para o disco”, uma personalidade tão particular que exigia a chamada de um afinador todas as manhãs de gravação para corrigir os efeitos de uma noite de descanso. E talvez seja essa personalidade que aproxima Rita de Tori Amos em Bird hunter ou de Fiona Apple em Desire but no fire.

Nem pais nem padrinhos

Rita Redshoes não ignora que Tori Amos baptizou como Strange Little Girls um disco dedicado a versões de várias das suas referências fundamentais e em que se metamorfoseava numa mulher diferente em cada tema. Nada que tenha pesado especialmente na composição de Her, mas será o exemplo mais flagrante da atracção natural da música pelo universo de cantoras e pela sua exploração da condição feminina. Não é novidade que desde os tempos dos Atomic Bees e sobretudo do projecto Photographs – que se transformou, com os anos, em Rita Redshoes – a sua música sempre foi investida de uma clara feminilidade. Mas em Her essa feminilidade torna-se mais afirmativa, alastra por todo um álbum povoado de várias mulheres, e tem em Mulher uma canção-manifesto feminista.

É provavelmente uma consequência também de, em três temas, Rita assumir pela primeira vez o português. Mulher e Vestido – uma canção ambígua, mas em que é possível ler a descrição enevoada de uma violação (embora não fosse essa a intenção da autora) – impelem-na para canções que assumem mais as palavras, escondendo-se menos em abstracções. “O inglês amolece a mensagem”, justifica. “Acredito muito no instinto na música e essas canções apareceram-me em português. Se calhar havia aqui algo inconsciente que foi sendo trabalhado e crescendo, mas agora quero dizer isto e quero que no meu país saibam do que estou a falar. Não me quero esconder, quero dar o corpo às balas. O meu avô vai perceber pela primeira vez o que estou a dizer e isso é muito forte.” Foi também esse impacto que percebeu no seu público ao cantar em português no espectáculo The Other Women, quando se tornou evidente que chegava “directamente ao coração das pessoas”. “Gostei disso – é muito poderoso. E achei que estava a ser burra, a perder um bocado da história. Ando aqui há uns anos e já devia ter percebido.”

Mulher, um dos primeiros temas a surgir para o novo disco – e um dos exemplos de canções magníficas que Rita aqui assina, como Desire but no fire, Any other choice, Take me to the moon, Vestido ou Wake up, goodbye –, ajudou-a a encontrar um trilho no pendor feminino que o álbum assume. “Deve-se a muitas coisas e tem obviamente que ver com o sítio e a idade com que estou, ser ou não ser mãe, essas decisões que tenho de começar a ponderar”, confessa. “A par com uma coisa que já está em mim há algum tempo, com a qual já estive muito zangada: isto de ser um mundo muito masculino e o espaço que é dado àquilo que um homem diz ou aquilo que eu digo enquanto artista não ser o mesmo ou não ser levado da mesma forma. Por trabalhar num mundo de homens e ter um ar frágil pode parecer que preciso de pais e de padrinhos. Mas não, não preciso.”

Esse processo, que diz ter demorado a perceber e se tornou mais claro nos projectos que manteve com Paulo Furtado (na forma como detectava uma diferença de tratamento em relação ao dois), levou-a depois a querer reagir. Her será o sinal mais óbvio dessa reacção, o rastilho para uma excelente colecção de canções que recusa a divisão do mundo entre o homem que vai à caça e providencia, e a mulher cuidadora que assegura a harmonia do lar. A música, sim, também serve para isto. Para Rita Redshoes reclamar o espaço a que tem direito, sem ter de ser autorizada por alguém para dizer o que pensa.

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