Agarrem que é ladrão!

Em Portugal a ciência come-se e a "peste grisalha" irrita. De Olhão a Gouveia, cenas do nosso bizarro quotidiano.

Andávamos nós entretidos com a subtracção de umas letras, quando da espuma das notícias emergiu um caso deveras relevante de roubo. Note-se que o roubo é algo comum no noticiário regular: roubo de bens, de tempo, de conforto, de paz, até de vidas. Mas este roubo tem que se lhe diga. Lembram-se do homem que roubou uma lampreia num supermercado de Viana do Castelo, pagando na caixa uma lata de sardinhas e fugindo com o volumoso ciclóstomo oculto debaixo do braço? Foi há já nove anos, uma eternidade. Pois eis que agora, no extremo oposto do país (Olhão), alguém se deu ao trabalho de atacar pela calada da noite um tanque piscícola, roubando dali nada menos que dois linguados. E levou-os debaixo do braço, como o larápio da lampreia, perante a impotência do vídeo-vigilante de serviço, que só o viu encapuzado. Que importa isso?, dirão. Importa muito. Fiquem sabendo que não era um linguado qualquer, era um reprodutor e isso “não tem preço”, disse o director da estação-piloto. No ataque, à forquilha, ficaram feridos mais três linguados. Podia ter sido um massacre. Pior que tudo, perderam-se dois a cinco anos de trabalhos científicos, garantem-nos. É que os exemplares postos nos tanques são seleccionados durante anos (para apurar a espécie) e só quando cumprem a sua função científica vão parar ao prato. Mas têm de passar por um jejum primeiro, porque os tratamentos a que são sujeitos não aconselham a ingestão. Nada de grave: só uns antibióticos e desparasitantes, coisas assim. Desta vez, a coisa alterou-se. E mal. Foi a primeira? Não. Há dias, foi atacado o tanque das corvinas. E em Fevereiro já meia dúzia de robalos e linguados tinham sido roubados, todos com chip. Chip esse que deve ter entrado alegremente, também ele, na cadeia alimentar humana. Por que esperam então, senhores? Por um ataque em massa aos tanques, vazando-os por completo? Não seria melhor dotá-los de melhores protecções? Um fosso com piranhas? Crocodilos? Arame farpado e electrificado? Protejam-se e protejam-nos. Mastigar chips ou antibióticos diluídos num qualquer cozinhado de restaurante é mesmo muito aborrecido.

Aborrecido, no mínimo, é o resultado da história que se segue. Não tem nada a ver com peixes, pelo menos à superfície (há peixes de águas profundas, como o cherne, mas daí vêm outras histórias), embora ostente algumas escamas. Explica-se de forma breve. Um deputado (Carlos Peixoto, do PSD) escreveu um artigo num jornal onde dizia, a dado passo: “Segundo estimativa do INE, em 2050 cerca de 80% da população do país apresentar-se-á envelhecida e dependente e a idade média pode situar-se perto dos 50 anos. A nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha.” Tal “peste” traz, segundo ele, “um aumento penoso dos encargos sociais com reformas, pensões e assistência médica”. O que o levou a aconselhar: “Precisamos, todos, de mudar a nossa mentalidade, de a renovar, de apostar no incremento da natalidade. Se assim não for, envelhecemos e apodrecemos com o país.” Alguém que então já “envelhecia e apodrecia” (para seguir o raciocínio do escrevente) respondeu-lhe à letra, noutro jornal. O deputado sentiu-se ofendido e processou-o. Não teve sorte: o tribunal de Gouveia absolveu o autor da carta (António Figueiredo e Silva). Por isso o deputado insistiu, recorrendo para a Relação de Coimbra, que levou a uma revisão do caso e à condenação do autor da carta pelo “crime de difamação agravada”. Os juízes não devem ter lido o que sobre tal deputado se escreveu nas redes sociais, que é de fazer corar as pedras da calçada. Porém, o septuagenário autor da carta, de escrita bem mais elaborada e polida mas irado por lhe terem colado a “peste grisalha” à pele, foi condenado a pagar 3 mil euros ao queixoso mais uns 2 mil ao tribunal. Isto apenas com a reforma que a sua condição “grisalha” lhe permite. Pois bem: lido e ouvido o deputado (há discursos no Youtube) e lido igualmente o agora condenado (que na carta até citava Oscar Wilde!), a sugestão óbvia é que a multa (por muito injusta que seja, e é) possa ser paga em lições de português ministradas pelo condenado ao queixoso. Teríamos todos muito a ganhar, “grisalhos” ou não.

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