A política do Nobel

Meio século depois, como afirmou Dylan aquando do lançamento de "The Freewheelin’" Bob Dylan, “os criminosos [continuam a ser aqueles que] voltam a cabeça quando vêem que algo está mal e sabem, positivamente, que está mal”

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Craig Lassig/Reuters

Em Outubro de 1963, Bob Dylan estreava "The Times They Are A-Changing". Meio século depois, o artista norte-americano é premiado com o Nobel da Literatura. Já por diversas vezes Dylan estivera entre os favoritos à nomeação da Academia Sueca, mas esta nunca o havia premiado e, precisamente num ano em que nada o fazia prever, eis que todo o mundo é surpreendido na tarde de 13 de Outubro. Posto isto, uma questão coloca-se: porquê este ano?

Em 1975, Dylan e Jacques Levy escreveram "Hurricane", uma música de protesto que denunciava os motivos racistas para a prisão de Rubin Hurricane Carter após um triplo homicídio, em Paterson, Nova Jérsia. Este não foi um caso ímpar na década de 60 nos EUA. Meio século depois, são inúmeros os casos nos Estados Unidos de alegado uso abusivo de força por parte das autoridades contra afro-americanos, latino-americanos e outras etnias. O paralelismo entre as duas épocas é evidente.

Zimmerman (nome civil de Dylan) denunciou e lutou também contra o excessivo intervencionismo americano. Em "A Hard Rain’s A-Gonna Fall", Bob Dylan escrevia contra a crise dos mísseis de Cuba de 1962, em que se temeu uma guerra nuclear entre os EUA e a Rússia. Hoje, assistimos novamente a uma perigosa tensão entre estes dois países.

Mas será o isolacionismo a resposta? Em ano de eleições, o candidato republicano Trump insiste na construção de um muro na fronteira com o México. Medidas de isolacionismo e proteccionismo como as que defende podem ter um impacto muito negativo na já frágil relação entre os EUA e o México — e entre os EUA e o mundo.

Precisamos de líderes que nos saibam guiar nestes tempos de complexidade e incerteza. Mas as eleições americanas não transmitem confiança neste campo: de um lado, (novamente) Trump; mas do outro, nem Hillary Clinton foge a duras críticas. No entanto, houve recentemente dois exemplos de boa liderança de acordo com os valores que Bob Dylan tão afincadamente defendeu. Há o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, pelos seus esforços para pôr fim à guerra civil colombiana, que lhe valeram um outro Nobel. E há também Guterres, nomeado secretário-geral da ONU, depois de uma campanha onde fez questão de alertar para a importância da luta contra o xenofobismo, racismo, populismo — grande foco da fase intervencionista de Bob Dylan.

Meio século depois, os problemas que levaram este prestigiado músico norte-americano a ser aclamado não só no seu país, mas em todo o mundo, mantêm-se. Meio século depois, como afirmou Dylan aquando do lançamento de "The Freewheelin’" Bob Dylan, “os criminosos [continuam a ser aqueles que] voltam a cabeça quando vêem que algo está mal e sabem, positivamente, que está mal”. Meio século depois de "Masters of War", voltamos a ter uma parte da sociedade que “faz crer que as guerras são necessárias para conseguir uma liberdade fictícia”.

Este prémio foi supreendente, mas é tudo menos aleatório: faz parte de uma estratégia política da Academia Sueca que tenta avisar a sociedade do caminho que estamos a (re)tomar. Um caminho em muito semelhante ao que seguimos não assim há tanto tempo, apenas há meio século.

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