Ainda o Orçamento... e a modernização sustentável da administração pública

A política de dados abertos proporciona a racionalização de recursos dentro da própria administração pública, pelo simples facto de evitar duplicação de esforços na recolha e produção de informação.

A proposta de Orçamento do Estado e Grandes Opções do Plano para 2017 tem gerado intenso debate na comunicação social, versando matérias tão críticas para os cidadãos, como impostos, pensões, prestações sociais, saúde, e educação. Nas múltiplas discussões são raras as referências às perspectivas que se avizinham para a modernização da administração pública.

Apesar de não cativar grande atenção, este tema tem sido repetidamente apontado pela Comissão Europeia e pela OCDE como fundamental para a competitividade empresarial, confiança política e bem-estar social.

O grande investimento em tecnologias de informação e comunicação na prestação de serviços públicos ao longo das últimas duas décadas, como aposta crítica para a redução de custos operacionais, melhoria de desempenho e qualidade no atendimento administrativo ao público, permitiu acesso cada vez mais ágil por cidadãos e empresas a serviços de grande complexidade e simplificou o cumprimento de obrigações, com particular destaque na área fiscal. Aliás, nas estatísticas europeias, o nosso país está bastante bem posicionado relativamente à oferta digital de serviços públicos.

 O programa Simplex+2016, publicado este ano pelo Governo, prevê continuidade na implementação de soluções tecnológicas que prometem reduzir custos administrativos – nomeadamente a integração e centralização de bases de dados, novos portais e disponibilização de informações – e que visam facilitar ainda mais o cumprimento de obrigações pelos cidadãos e empresas, não apenas no âmbito fiscal, mas também na Segurança Social, em processos de licenciamento, no início de actividades económicas, e na emissão de documentos pessoais e certidões.

Apesar do dinamismo revelado por estas iniciativas e dos passos gigantescos percorridos no processo de inovação tecnológica pública ao longo de anos, subsistem grandes desafios à aposta na modernização electrónica da administração pública. O desafio orçamental é um dos mais importantes. O esforço reformista assenta na sustentabilidade de uma estratégia digital que implica investimento consistente na integração de tecnologias e ferramentas de gestão, alinhadas ao “negócio público” e com retorno mensurável. No actual contexto de prudência orçamental, torna-se necessário apresentar publicamente – e com números facilmente decifráveis – os benefícios económicos e sociais deste investimento.

A implementação eficaz de uma estratégia de dados públicos de acesso aberto (“open data”) torna possível integrar instrumentos de inovação na gestão pública, utilizando recursos disponíveis em organizações não-governamentais e sem sobrecarga para o erário público.

A administração pública dispõe de volumes gigantescos de informações recolhidas, produzidas ou pagas por entidades públicas, como por exemplo, dados demográficos, sobre educação, saúde, ambiente, transportes, emprego, prestações sociais, entre outros. A disponibilização pública destes dados em formato e com standards de codificação e estrutura que permitem leitura mecanizada e a aplicação de software analítico torna possível a produção de evidências estatísticas em tempo real. O conhecimento que resulta destas evidências possibilita muito maior precisão na avaliação dos serviços públicos e pode ser utilizado por gestores públicos para desenhar novos modelos de prestação de serviços "à medida" e em função das necessidades e rotinas dos utilizadores – por exemplo, introduzir mecanismos que diminuem o tempo de espera no atendimento hospitalar ou em transportes públicos.

Mais genericamente, a política de dados abertos proporciona a racionalização de recursos dentro da própria administração pública, pelo simples facto de evitar duplicação de esforços na recolha e produção de informação. Um caso emblemático da racionalização de recursos através da estratégia de dados abertos foi a abertura, pelo registo predial dinamarquês, em 2005, de dados sobre propriedade (cadastro). De acordo com o observatório Govlab, esta medida que implicou o investimento de apenas 2 (dois) milhões de euros teve um retorno de 62 (sessenta e dois) milhões de euros, entre 2005 e 2009.

Portugal ainda não está numa posição muito forte nas estatísticas internacionais no domínio dos dados abertos, situando-se em 31.º lugar no Open Data Barometer Rank e em 54.º lugar no Open Data Index Rank. Algumas iniciativas recentes, por exemplo, na Câmara Municipal de Lisboa e na Associação Nacional de Municípios, combinam a criação de portais de dados abertos com parcerias com entidades especializadas na análise de grandes volumes de dados, precisamente no sentido de mover o país no sentido de uma estratégia sustentável de modernização pública em tempos de prudência fiscal e de transparência.

Não esqueçamos, porém, que a abertura de informação por entidades públicas tem de salvaguardar – com garantias muito fortes – a protecção à privacidade, segurança e anonimidade de dados pessoais. Os riscos de utilização abusiva de dados pessoais tornam-se claros quando lemos a notícia recentemente publicada pelo jornal Washington Post relativamente ao plano pelo Governo chinês de desenvolver um sistema de pontuação social aplicável a cada indivíduo, através da monitorização do seu comportamento (na forma de dados recolhidos pelas entidades públicas) em interacções pessoais, económicas, sociais e laborais.

Precisamente em resposta aos potenciais riscos que os avanços tecnológicos no domínio de recolha e análise de dados colocam à defesa dos direitos e liberdades fundamentais, foi publicada este ano legislação europeia (em particular o Regulamento UE 2016/679) que impõe um conjunto de obrigações públicas – abrangendo medidas técnicas, tecnológicas, organizativas e processuais e um compromisso político forte e blindado – para protecção, confidencialidade e segurança de dados pessoais. A autoridade e legitimidade de modelos de governança cada vez mais tecnológicos depende da implementação rápida, rigorosa e eficaz destas garantias.

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